Coluna 07 | Fala aí... Joema Carvalho (Brasil)

coluna 07 

MULHERES QUE CORREM COM OS LOBOS DE CLARICE PINKOLA ESTÉS

Por Joema Carvalho (autora convidada)



 Em meados da década de 90, estava em uma sequência de leituras em uma busca pessoal. Ninguém ensinou minhas bisavós, minhas avós, minha mãe a serem mulheres, logo, também, não aprendi. Fazem coisas de “mulher”, mas não sabem ser mulheres. Ninguém nos ensina a sermos mulher. Algo trancando dentro de um baú jogado a sete chaves no fundo de algum mar ainda não mapeado. Resume-se então “mulher é complicada”.

Dentre o que li, Simone de Beauvoir, cuja frase “não se nasce mulher, torna-se”, ainda é polêmica, apesar de estarmos em pleno século XXI. Entendo muito bem o que a Simone colocou. Estendo a frase para os homens: “não se nasce homem, torna-se”, na verdade “não se nasce ser humano, torna-se”, Precisamos nos resgatar para que princípios básicos possam estar presentes em nossos atos, como ética e moral, ternura e compaixão, noção de que, o limite meu se encerra quando inicia o do outro, seja lá qual for a relação.

Iniciei uma sequência de leituras visando um encontro comigo mesma. Neste contexto, levei o Mulheres que Correm com os Lobos da minha mãe para Curitiba. Em um determinado momento, em uma das primeiras histórias, a Babá Iaga diz para a menina ir embora porque ela estava querendo saber demais. Fechei o livro, neste momento, a menina era eu mesma, diante da “La Que Sabe”. Retomei a leitura do livro alguns anos depois. Mulheres que Correm com os Lobos é um livro que conversa com quem lê. Um livro que não precisa ter uma sequência lógica de leitura de início, meio e fim. Você abre o livro e o lê. Com certeza, na página que for aberta estará o que precisa naquele momento.

            A vida se apresenta e muitas vezes o caminho é o do risco. A mulher selvagem segue seu processo de aprendizagem mesmo caindo nos quartos trancados de uma Barba Azul. Curiosa, o desafia, deixando claro que chave não limita uma mulher, muito menos regras que cortam a sua astúcia e a reduzem a uma esposa que apenas obedece. Resgata os irmãos da alma que chegam dentro de um espaço sagrado da psique. Ela encerra um ciclo e parte para outra etapa, mais mulher.

            O livro é resultado de uma pesquisa, onde Clarice Pinkola Estés observou semelhança entre lendas, histórias e contos de fadas dispersos em diferentes locais do planeta e culturas. Passou a fazer uma conexão psicológica entre estes contos e relacioná-los com as características da mulher. Percebeu também semelhança entre o comportamento da mulher Homo sapiens com a Canis lupus. Uma mulher instintiva uiva no perigo, pede ajuda e se encontra. Estar só, é estar ao lado da própria companhia, um momento, um espaço sagrado. Se recolhe quando fizer sentido e se abre quando achar oportuno. Uma mulher selvagem é dona e capaz de suas realizações, dos seus “sins” e dos seus “nãos”. Não delega a sua cria a outra pessoa. Ocupa o seu espaço ao lado de um companheiro. Parte se sua essência e extinto pedirem.

            Morei em uma chácara. Permitia que meu filho, na época, pequeno, se sujasse de lama, da mesma forma, que outras crianças que fossem lá brincar com ele. Em um destes dias, a menina foi arrancada pelos pais chorando da poça de lama, toda suja: “Você é menina, não pode”. Hoje, é uma adolescente com dois filhos gêmeos. Ali, esta “educação”, a tolheu do prazer, do contato com a terra, com a sua natureza selvagem, com a consciência do seu próprio corpo, espaço e vontade, graças a retórica “você é menina, não pode”. Uma adolescente engravidar e parir foi “certo”! O estímulo à dança sexual, esmaltar as unhas e se maquiar desde menininha foi “correto”. Desde sempre foi estimulada a ser objeto, nunca consciente de si e de suas vontades, conduzida pela tal “educação” fundamentada em princípios cristãos hipócritas. Seguiu o caminho da doença das mulheres que a antecederam. Esta semente caminhará com a família até que haja uma mulher desperta que mude este rumo. Algo novo no meio destas células arkáshicas deletérias que as minimizam dentro de um sistema antropocênico patriarcal.

            Fui comprar um presente para dar para uma amiguinha do meu filho, ainda da pré-escola. Praticamente, todas as opções cor de rosa, que adoro, mas atribuída a uma confusão, com o tema princesa. Daquelas que esperam príncipes que resolvam as contas do mês, controlem o balanço mensal, o que pode ser gasto e que as despertem de um sono profundo. Dentro de uma lógica que entrega a sua própria capacidade e protagonismo na mão do outro. O comodismo e a passividade de um lado e a sobrecarga e a responsabilidade do outro lado. Não é um relacionamento saudável. Ambos perdem quando uma das partes não tem a mesma força ou poder de realização. Optei por comprar um jogo de tinta, lápis de cor e giz de cera. A princesa sem as mãos e sem os braços, uma das histórias presentes no livro, fez um caminho, conforme “Se estiver passando pelo inferno, continue” (Winston Churchill). Não o encurtou, não o delegou a ninguém, mesmo sendo mutilada. Sabe “a dor e a delícia de ser o que é” (Caetano Veloso) ou “só eu sei, os caminhos pelo que passei” (Djavan). Resgata-se em plenitude e se fortalece como mulher, em uma nova jornada.

A natureza da vida-morte-vida, a história da mulher jogada ao mar pelo pai, tendo a sua pele e seus olhos comidos pelos peixes. Pescada como esqueleto por um enui, se emaranhou na vara dele, o assustando. Ele tentou como pode se livrar da criatura e nada. Havia a pescado em águas assombradas, onde seus colegas pescadores não iam. O esqueleto fora com ele para casa. Ele adormeceu. Enquanto dormia, uma lágrima caiu dos seus olhos, tornando-se um rio que alimentou aquele monstro que resgatou a sua pele e deitou-se ao lado dele como mulher, emaranhada de outra forma no seu corpo. O encontro com o outro, o amor. A morte na casa do amor. Apenas quem não vulgariza ou simplifica a palavra amor, compreende.

Presa a alguém que tirou dela o que a pertencia, a sua pele de foca, a sua natureza. Quando um lado prende, o outro expande. A despedida e conexão com OOruk, filho deste casamento. Parte sua que herdou a mesma natureza. Que ainda precisava ficar um tempo a mais na superfície, antes de seguir para o mundo das focas, dos seus ancestrais maternos. O sopro da mãe enquanto energia para continuar, “soprarei nos seus pulmões um folego especial para que sempre cante as suas canções”, uma conexão etérea, que distancia nenhuma é capaz de romper, diálogo que acontece para muito além, quando a mãe está conectada com a sua essência e cria. O melhor que uma mãe dá para o filho, é ela integrada a si mesma, única forma de ter respeito de quem pariu. A mulher foca, junto da foca prateada, beijaram o menino e saíram mar adentro. Ainda hoje ele é visto ao lado do seu caiaque atracado, ajoelhado parecendo falar com uma foca, em meio a nevoa. O moço foca retrata no seu olhar selvagem, expressão sabia e amorosa. Não tem como negar quando a alma quer seguir em busca de sua natureza. O filho fica como parte de seu corpo, como semente que cai e que ao mesmo tempo é outro indivíduo. A mãe instintiva sabe que o melhor para ambos é a individuação. A maior riqueza e força que ela dá para o filho. O algo a mais que ela sabe que ninguém irá tirar dele. Fê-lo homem, não o segurou nem pelo calcanhar para não ter ponto fraco.

            Para escrever o texto, resgatei algumas histórias que foram importantes e que gostei muito quando li o livro. Esta foi a história que lembrei primeiro, algo interno dizia, “tem que ler a pele de foca”...”procure foca”. Meu momento atual. Mexeu demais quando reli. Meu trabalho proporcionou-me vestir a minha pele de foca e mergulhar em águas profundas. Uma nova oportunidade de resgate da essência, implicando em um distanciamento físico do meu filho. Precisamos alinhar o nosso olhar e a partir deste momento, uma cumplicidade e apoio mútuo para seguir nossa trajetória. Mais uma vez, o livro conversou comigo.

Parece que quando uma mulher faz respeitar as suas “deusas sujas”, a sua Baubo, Iambe, a sua “deusa do ventre”, “a que fala no meio das pernas”, ela está integrada a si mesma, ela se tem. Aquilo que nos foi tolhido, o prazer, o respeito com o nosso próprio corpo, o corpo que gera seres humanos, independente de gênero, o princípio de uma vida. Quando este corpo, por inteiro ri, se diverte, se expressa com prazer e alma, sexualmente, de forma criativa, ela está pronta e integrada. Para tanto, “precisamos apenas de um fragmento para resgatar o todo”. Quando as mulheres riem “sem se ligarem para as amidalas aparecerem, com a barriga solta... uma risada sexual...chegar longe e fundo na psique, sacudindo todos os tipos de coisas, tocando nos nossos ossos e fazendo com que uma sensação agradável corra por nosso corpo”, Baubo estará presente. Estará presente na história do esperto e ao mesmo tempo tonto, Coyote Dick, na recuperação de Deméter depois que Perséfone se foi com Hades.

Nenhuma história permanece na superfície. Um mergulho na essência, na alma, na psique. Apenas para quem não tem problema com o espelho. Para aqueles que tem coragem de olhar para si e se bastam, não precisam de outros para culpar ou jogar os seus fardos.

Se isto é ser “feminista”, então, uma Mulher que Corre com os Lobos o é, na verdade, isto é simplesmente, ser mulher, sem mistério algum. O livro é uma Bíblia Sagrada que deve ser lido por seres humanos.

Se eu compartilho meu corpo com uma engenheira e com uma escritora, se eu coloco botina e faço campo no meio de homens, maquiada, devo sem dúvida nenhuma a este conjunto de busca e leituras, à caixinha de Pandora onde deixei o Mulheres que Correm com os Lobos. Devo a “La Que Sabe”, a “Baba Iaga”, a “Baubo”, a “Mulher Selvagem”, a “La Loba” que me guiaram e que aqui, tenho uma oportunidade de me curvar, feito bambu, agradecer e entregar este texto a estas guias sagradas. Graças a elas, assumi a minha “dualidade” e estou confortável com isto.

Escrever sobre este livro foi um presente, outra responsabilidade, outro não saber se eu daria conta. O texto fluiu antes da minha certeza, na vibe do prazer. Foi o resgate de alguém, um livro, um companheiro de cabeceira que me confortou muito, durante uma etapa. Um banhar-se em um rio violeta, com cheiro de lavanda, depois de um ciclo, onde sai melhor, um caminho sem volta. Acho que fui envolvida por estas anciãs na “Ciranda das Mulheres Sábias”, outro livro da autora, que também já li e, da mesma forma, recomendo.



Joema Carvalho, Curitiba – PR, engenheira florestal, doutora, perita. Autora do livro Luas & Hormônios, selecionado e editado pela Secretaria do Estado da Cultura (2010). Colunista do Portal Mhario Lincoln do Brasil e do Observatório de Comunicação Institucional. Organizadora do eBokk Tuíra editado pela Amazon (2020). Participação em coletâneas: Conexão IV, Nogue Editora (2018); Literarte Celebra a Região Sul. Coletânea da Associação Internacional de Escritores e Artistas (2019); Parnaso Poético III (2019), Porquê Somos Mulheres. Antologia Digital – Poesia, Selo Editorial da Revista Ser MulherArte (2020). Coletânea do Mulherio das Letras - Portugal (2020). Participação de projetos: Homenagem do Dia das Crianças do Programa Papagaios do Brasil. Seis poemas de seis papagaios lidos por crianças (2020); Do Outro Lado do Vídeo Há Um Poema – Biblioteca Publica do Paraná e Instituto Sidônio Muralha (2020), Quarentena Literária – Prosa Nova Produções Culturais (2020), Chuva Poética (2018 e 2019).










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