Para não dizer que não falei dos cravos | Um conto de Miguel Arcangelo Picoli

Coluna 05

 

Um conto de Miguel Arcangelo Picoli

Annelize


Nicole sempre me deu trabalho. Em casa ou em qualquer lugar tudo era motivo para verdadeiros escândalos constrangedores, e por conta de seus modos me sentia incapaz e inadequada ao cuidar da única filha. Não sei com qual antepassado se parecia, já que na família toda éramos calmos com tudo. Seu comportamento era terrível, enquanto ainda atribuía essa dificuldade à minha separação e falta de aptidão para criá-la sozinha, precisava de um tempo do qual não dispunha e um psicólogo seria a próxima providência porque todas as tentativas foram em vão e não se tratava mais de uma fase apenas. Necessitava de ajuda.

Fomos avisadas sobre a chegada de uma nova professora na escolinha, pois viria substituir Magda, com casamento marcado. Certamente eu era conhecida como a mãe mais constrangida da instituição e esperava por outro espetáculo do furacão Nicole que reclamava se alguma coisa estava igual ou diferente.

Ao buscá-la, nesse dia, a vi falando com Annelize. Fiquei impressionada, pois pareciam mãe e filha num momento tão terno, doce e tranquilo que me deixou aborrecida. Nunca a vira conversando tão bem, inclusive comigo, e a nova professora me parecia mais uma modelo linda e bem vestida do que uma profissional da educação. Delicada, elegante, e não usava qualquer anel. Aguardei sem pressa até que se despedissem me deliciando com aquilo e depois ouvi elogios intermináveis sobre a nova professora à qual mesmo tendo visto a distância, também os tinha.

Minha garotinha estava diferente, tudo melhorou e ficou mais fácil, mas sendo honesta: entrei num período de silêncio com Nicole como se ambas fôssemos adultas e tivéssemos tido algum desentendimento sendo ela a culpada. Sem dúvida, o que eu sentia era ciúme, mas queria entender melhor a extensão daquilo. Nos dias seguintes ao busca-la me deparava com ambas juntas, conversando, se abraçando, sorrindo... Tive dúvidas se Nicole e eu havíamos tido algum momento igual. Invejável.

Encontrar quem trabalhe adequadamente com seus filhos e lhes façam bem é tudo que alguém pode desejar. O problema é que também a mim fazia muito bem e eu não compreendia isso. Era uma benção receber de volta aquela menina agora tranquila e comportada, como se houvesse passado anos e durante esse período tivesse amadurecido além do esperado e desejado. Nenhuma terapia teria esse poder.

Não tinha queixa de nenhuma professora ou funcionária, pois eram impecáveis em seus trabalhos, mas sei que Annelize foi a primeira e melhor amiga de Nicole. Ah, e soube lidar com ela, descobriu a linguagem certa. Cheguei a conversar discretamente com outras mulheres sobre mudanças significativas com seus filhos após sua chegada, e ninguém notara qualquer diferença. De fato, era atenciosa com todos igualmente, apenas meu coração foi tocado e sem o perceber passei a vestir-me e arrumar-me melhor apenas para buscar Nicole.

Para mim tudo bem ser mãe, uma escolha minha, bem pensada, planejada e nada na maternidade me incomodava mesmo fazendo também papel de pai, mas Annelize me parecia uma última peça de um quebra-cabeça que preenchia algum vazio, completava algo ainda em aberto, e imaginei nossas vidas se estivesse conosco. Seria adorável. Talvez fosse hora de rever a vida que fora bem até o casamento e o nascimento de Nicole, mas se perdeu e tudo acabou em nada. O que parecia estar completo se transformou numa confortável e desejável distância, definitivamente.

Alex, um colega antigo na empresa recentemente se declarara. Senti-me lisonjeada, mas precisei ser sincera: por um bom tempo – senão em definitivo –, não planejava qualquer novo envolvimento, não pensava mais nisso e havia decidido criar Nicole sozinha. Nunca notara sua queda por mim e não sabia até que ponto seria apenas mais um caso de uma presa fácil por estar sem companheiro.

E após conhecê-la não pensei em mais nada... não resisti e me apresentei, conversamos e me vi diante de alguém que me transmitia muito além de paz, segurança e beleza. Seu olhar parecia ter o poder de ler pensamentos e despertar sentimentos e desejos, e notou meu indisfarçável encanto e admiração. Sentia também que Nicole, se pudesse a escolheria dentre nós. Não me preocupei em conduzir a conversa porque o fazia tão bem e creio que se tratava de um episódio inédito uma criança e sua mãe não quererem ir embora da escola, mas tínhamos nossos motivos.

Nunca o simples ato de comprar algum presentinho para a professora fora tão difícil. Queria algo singular que transmitisse toda gratidão pelo nosso bem estar. Apaixonei-me e isso não estava em meus planos, mas em meu coração. Vi catálogos, sites, revistas, vitrines, observei pessoas em busca de ideias para presenteá-la, e nada me convenceu. Pedi então a Nicole que lhe perguntasse do que gostaria.

Escolheu jantar em casa e adiantou que poderia fazer qualquer prato, sem me preocupar com nada. Achei sua escolha magnífica, e ainda nos levou ao Salão da Criança que há tempos tinha prometido a Nicole sem cumprir a promessa, o que nos foi mágico e onde passamos o dia todo.

Com ajuda de Nicole, no dia anterior, limpamos e arrumamos a casa como há tempos não fazia, e seu quarto antes caótico parecia o aposento de uma princesa. Para o jantar escolhi pratos fáceis com um assado, o purê que minha filha adorava, uma salada, um arroz e também uma massa. De sobremesa, creme gelado.

Nicole comprou com seu dinheirinho uma barra de chocolate que embrulhou para presente tendo até um bonito lacinho rosa e também um bilhete indecifrável. Escolheu suas roupas e me pediu para maquiá-la. Preparou-se para um encontro.

Linda como sempre e vestida mais à vontade, mas ainda assim divinamente Annelize também nos trouxe presentes. Nicole recebeu uma bonita pulseira em prata, e eu, um CD de jazz que prontamente coloquei para ouvirmos. Uma coletânea começando com Diana Krall e The Look of love. Bebemos um licor e notei como Nicole segurava suas mãos, prestava atenção em tudo que dizia e não se desgrudava... estava mesmo encantada, e nunca pensei que teria ciúmes de quem Nicole gostasse enquanto criança pequena.

— Nem preciso lhe dizer o quanto a adora.

— É um amorzinho! – disse com a classe que me seduziu desde que a vi pela primeira vez.

— Tem filhos?

— Não, por opção. Não me vejo feliz tendo filhos.

— Entendo. Às vezes, me pergunto se a certeza de gostar de ser mãe que tenho é verdadeira...

Sorriu, estava habituada a reclamações e desesperos de pais e responsáveis. Estranho, mas percebi uma grande proximidade entre nós. Inexplicável e real.

Nicole mostrou-lhe seu quarto, brinquedos, desenhos, seu peixinho e fotos enquanto eu preparava o jantar. Comportou-se como um anjo à mesa, não nos interrompeu nenhuma vez, foi escovar os dentes sem que eu implorasse e logo adormeceu no sofá. Carreguei-a e levei até seu quarto colocando-a na cama e voltei à sala onde com um gesto Lize pediu para sentar-me ao seu lado.

— Sinto-me em segundo plano diante do quanto te adora.

Delicadamente colocou um dedo em meus lábios dizendo:

— É apenas sintonia e estão quase lá. Todos a alcançam, não se preocupe. Agora falemos de você...

Levantou-se e apagou a luz. O ambiente ainda recebia claridade do corredor e ficara agradável. Sentou-se ao meu lado e deitou minha cabeça em seu colo. Com mãos delicadíssimas acariciou meu rosto, lábios e meus cabelos e manteve meu olhar preso ao seu. Disse-me coisas lindas, como se me conhecesse a vida toda e soubesse exatamente como me sentia, o que desejava ouvir, como se fosse tão bela e atraente quanto ela.

Vagarosamente foi deslizando uma das mãos até encontrar o primeiro botão de minha blusa. Pensei em dizer que Nicole poderia aparecer ali e...

— Não se preocupe, está exausta. Quando sair, me despeço dela.

De fato, igual Nicole esquecera-se de mim, esqueci-me dela. Voltei à mulher e cheguei a chorar de ansiedade e excitação, não acreditando no que estava acontecendo. Conduziu aquele momento sem pressa, suave e docemente, e apenas me entreguei. Despiu-me completamente e fez o mesmo. Seus beijos eram de uma intensidade inimaginável e sua boca passeou por todo meu corpo, me deixando extasiada. Correspondi tocando-a, explorando todos os sentidos. Foi raro, excepcional, maravilhoso. Ficamos um tempo deitadas e de mãos dadas enquanto pensei que minha respiração jamais fosse voltar ao normal.

Logo depois, saboreamos um café e conversamos à mesa, quando era tarde e precisava ir. Pouco antes de sair, acordou Nicole e se despediu, e no dia seguinte a veria no último dia de aula. Acompanhei-a até a porta e antes de vê-la entrar no carro e sair, disse-lhe que amara aquela noite e me sentia outra. Nunca estive melhor. Sorriu e me beijou novamente.

Havíamos conversado e ela iria embora ao término das aulas. Queria carreira, ficar perto da família, morar no exterior. Sabia de seus planos e precisei lhe falar.

— Lize... acho que não podemos ficar sem você. Sem querer fizemos planos e sonhamos viver ao seu lado. Diga que não irá... fique...

— Não posso, Val. Tenho um caminho longo, pessoal e profissional a percorrer e preciso fazê-lo. Não me realizaria se ficasse, embora sejam uma tentação maravilhosa.

— Dou um jeito de ir contigo.

— Val... não é o momento. Acredite-me...

Chorei e foi paciente não deixando de me abraçar forte por um longo tempo, até que estivesse melhor. Tudo nela era de uma classe que jamais encontrei noutro alguém.

Ainda me lembro de terem conversado bastante tempo. Lize, didática e carinhosa como de hábito, e Nicole aceitou melhor sua partida. Em meu íntimo, a certeza de não conhecer mais ninguém que nos significasse tanto. Pensei se poderia ter errado, se poderia corrigir algo, mas a questão não era essa, ela tinha seu caminho.

Ainda assim, não pude deixar de ficar triste por não ser quem faria Nicole feliz como gostaria, e que dias depois me mostrou uma mensagem recebida em seu celular: ― cuide-se sempre e bem da mamãe por mim.

No dia de sua partida Nicole e eu ficamos um bom tempo deitadas em minha cama, uma frente à outra. Cada uma a sua maneira sabíamos o quanto havíamos nos apaixonado e perdido. Lize nos ensinou muito sobre nós. Estávamos tristes, tínhamos o mesmo vazio, o mesmo silêncio, o mesmo olhar. Nessa noite dormimos abraçadas.


**


O conto "Annelize" faz parte do livro Contos para Cassandra (2019), dedicado à escritora Cassandra Rios.


Fonte: pixabay.com



Miguel Arcangelo Picoli é natural de Itatiba, interior de São Paulo. Nasceu em 6 de novembro de 1962. Atualmente reside em Morungaba-SP. Publicou seu primeiro livro de crônicas, Momentos, em 2018, pela Desconcertos Editora. Em 2019 lançou Contos para Cassandra, dedicado à escritora Cassandra Rios pela FoxTablet, e seu terceiro livro, o romance Lyz, será lançado em breve. Facebook: Miguel Arcangelo Picoli.





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