UniVerso de Mulheres 08 - Geni Núñez, por Valeska Brinkmann


|  Coluna 08 |

                                                                       Foto ©Luciana Frazão


Reflexões de Geni Núñez em três temas

por Valeska Brinkmann



I: Liberdades nativas:
"Livre como um pássaro a voar". Muitas pessoas acham passarinhos voando O Grande sinal da liberdade e entendo o sentido, mas penso que um pássaro voando é tão livre quanto um cachorro latindo, um peixe nadando, uma cobra rastejando. Todos vivendo o fluxo de suas naturezas.
Nesse sentido, se digo que, como humana, quero ser livre pra voar, poderia igualmente dizer que quero ser livre como um galo a ciscar. 
A lição que me fica disso é que nossa liberdade está mais em poder exercer os limites do nosso corpo do que almejar o irrealizável.
Imaginem uma aranha que dissesse: quero ser livre pra nadar como um tubarão!
Talvez não se desse conta que sua liberdade está em tecer suas fantásticas teias no ar, não em nadar no mar. Cobrar de um dia ensolarado que seja nublado é destruir seu brilho. Não falta nada em um dia de sol, nem sobra nada em um dia nublado.
"Mas o mundo é muito cruel comigo". O mundo todo? As borboletas também? O céu também? As árvores? De todo o universo, porque (determinados) humanos são cruéis conosco, o mundo todo é cruel? Quem compõe o seu/nosso mundo? 
Eu me recuso a reduzir "o mundo" a uma única espécie de bicho, ainda mais sendo esse bicho, o homem.
Reivindicamos a imensidão do mundo para repararmos o dano tanto da baixa autoestima quanto da alta autoestima colonial. Não somos (não deveríamos ser) o centro da vida alheia, tampouco o centro do mundo. É dessa centralização, inclusive, que decorre muito do sofrimento psíquico neurótico, ansiogênico. É deste centro hierárquico que operam também: cristianismo, monogamia, capitalismo, cisnorma, misoginia, racismo, especismo etc. 
Ser apenas uma parte e não o todo é libertador, maravilhoso. Há outros prazeres mais abundantes que o do controle bem-sucedido, da centralização, da eficácia da punição. 

II. O tamanho das coisas
Um grão de areia não é pequeno em si. Um grão de areia não deveria mesmo ter o tamanho de um elefante, senão seria um elefante, não um grão de areia.
Uma tartaruga não é lenta em si mesma, não voa rápido como um pássaro porque não é um pássaro.
Só se pode exigir de algo aquilo que se é possível para aquela existência.
"O homem é a medida de todas as coisas" dizia o Protágoras, colocando o humano no centro do mundo. Esse vício nos trouxe e traz uma série de prejuízos.
Como afirma Daniel Munduruku: "não devemos nos angustiar com coisas pequenas, todas as coisas são pequenas".
Cada existência é um presente, incomparável, imensurável.


III: Imaginando mundos: e se o amor colonial não existisse?
Que perfeito seria um mundo sem esse amor! Muitas vezes se acredita que o que falta no mundo é amor, mas penso que este amor se constitui justamente da falta. 
Quanto mais único/exclusivo, mais especial. Somos construídos para achar desconfortável ouvir "te amo como amo todo mundo/te amo tanto quanto amo a milhares de pessoas". 
O valor da construção deste amor colonial vem da escassez, ou melhor, da concentração. 
Que se tenha muito amor, mas que este amor seja só por x pessoa. Algo que lembra muito a lógica da renda e a propriedade privada. Devemos nos importar, cuidar e amar daquilo que é 'nosso'. Pra fora disso, a sensibilização cai mil degraus: que os outros adoeçam, sofram e morram, sem vinculação afetiva, pouco ou nada arranha o peito.
 "Ah, mas e se expandirmos o amor para quem ele não chega?" 
Se expandirmos em máxima potência ele deixa de existir, me parece. Porque esse tipo de amor precisa de um contraste, precisa haver os que amo x os que não amo. Novamente me lembra o dinheiro: se todo mundo tiver bilhões, ninguém terá bilhões, porque perde o valor que se dá justamente pela desigualdade brutal da concentração. Então o desejo de ser incluído no amor colonial por vezes ou entra na lógica da exceção, da substituição, do descarte. Também como o dinheiro, este tipo de amor é um privilégio que articulado com posições sociais, retifica lugares de importância no mundo. 
Nesse sentido, estamos muitas vezes com medo de perder o (pouco) amor que temos, mas penso que, utopicamente, se nos vinculássemos de outras formas, não precisaríamos ter medo nenhum. 
Se o direito à saúde, ao prazer, à dignidade não estivessem condicionados ao merecimento (no qual entra forte o amor),  as relações centre nós e com o mundo seriam muito mais leves. 
Amores horizontais não implicam em amar tudo da mesma forma, do mesmo jeito, mas amar sem hierarquia. 
Não é sobre homogeneização, mas sobre uma diferença radical, da impossibilidade de submeter a uma competição coisas como chuva, gente, capivara, abraço e tomate.




Geni Núñez (1991), graduada em Psicologia, mestre em Psicologia Social e doutoranda no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas na Universidade Federal de Santa Catarina.
É ativista no Movimento Indígena Guarani Anticolonial.

Comentários

  1. Que delícia de lê,sentir e perceber quantas armadilhas foram impostas no nosso pensar e agir.
    Gratidão 🌹 Bela 💞

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