Para não dizer que não falei dos cravos | Quatro poemas de Wesley Correia

Coluna 01



Quatro poemas de Wesley Correia


Teu homem

 

                      Teu homem não virá.

A melodia que, há pouco,

semeaste pelos sulcos de tua pele,

enquanto, aflito, tentavas te limpar

                                         de ti mesmo,

                                         não brotará,

                                         mas restará, seca,

    no fundo das mãos vazias, quedará num

canto do cômodo rarefeito,

e a partitura, então ininteligível,

                                       se executará

                            no adverso da regência.

 

                      Teu homem não virá.

Do desejo que imprimiste às ervas aromáticas,

do amor-quase-morte com que,

devotamente, temperaste

  o peixe para o jantar, permanecerá,

tão somente,

  o espasmo de uma premeditação,

     o sintoma de uma precipitação,

            a réstia de uma palpitação,

                    uma deletéria ilusão,

                           e uma excitação,

    que nunca tarda em dissipar-se.

 

                      Teu homem não virá.

Recolhe, pois, os pratos, os sapatos,

                           os gatos, os gastos.

Recolhe tuas ânsias, teu querer bem,

                tua boca ardente a morder

          a carne improvável da alegria,

                            recolhe-a, também.

E recolhe teu pelo eriçado,

os teus arfares, ai, os teus arfares,

recolhe-os todos!,

e recolhe-te, enfim, a ti mesmo,

quando a chuva, tua confidente,

vier anunciar a noite comprida.

 

                      Teu homem não virá.

Nem hoje  

          nem amanhã

                    nem depois.

Ama-te, por fim, e sê tu teu próprio homem,

e escandaliza-te com as seivas

de teu corpo transbordante, e ria-se da entrega, e

beije-te a boca, e envolve-te no teu próprio

abraço, e aquece-te no teu calor,

        e goza contigo, que teu homem aí está.

 

 

Minhas filhas

 

Quando a dor chegar,

navalha em histeria,

saibam, minhas filhas,

todo corte há de fechar

como a noite se fecha

em face do novo dia.

 

Minhas filhas, fantasmas

nascerão da vossa ilusão,

mas não se atemorizem.

Deixem que se abriguem

na luz de vossas fantasias,

posto que sentem medo

e já não podem com o ermo

de tantas vidas vazias.

 

Minhas filhas, paciência,

que um fruto para maturar

tem seu tempo e cadência,

e se acontecer de mirrar

terá sido na exata frequência.

 

Minhas filhas, atenção:

não cedam à tentação

de querer resolver os

problemas do mundo.

Antes, tentem resolver

os seus, o que já exige

um esforço profundo.

 

Chorem se tiver de chorar,

lutem se tiver de lutar,

gritem se tiver de gritar,

calem se tiver de calar,

avancem se tiver de avançar,

recuem se tiver de recuar,

mas tenham esperanças,

minhas filhas,

virtude maior não há

do que saber esperar.

 

Vão à praia

num domingo de sol,

minhas filhas,

e sejam felizes.

Mas, se não quiserem,

minhas filhas, não vão,

e sejam igualmente felizes

num domingo de sol,

que a praia inteira

estará à vossa disposição,

de verão a verão.

 

Sejam honestas,

minhas filhas,

paguem as contas,

estejam no trabalho,

rezem às santas...

Mas, ainda que atrasem

os pagamentos,

que faltem ao serviço

ou deixem de suplicar,

nem por isso,

minhas filhas,

fiquem tontas:

às favas, as contas,

aos ares, o trabalho,

às santas, o descanso,

que a máquina do mundo

segue sendo o que é,

como segue expiando a vida

na mais pura profissão de fé.

 

Fiquem certas de que o amor virá,

fiquem certas de que o amor irá,

e ainda mais certas

de que outro amor chegará.

Se queiram bem,

minhas filhas,

para que vosso bem

quebrante o espírito

de quem não o tem.

 

Minhas filhas,

não preguem tantas certezas,

não guardem tantas dúvidas,

caminhem com leveza,

pois nesse ir e vir

tudo se conforma

no próprio existir,

desde a hora de chegar

até a hora de partir.

 

 

 

 

 


Imaginário

 

Pende entre minhas pernas pretas

um mito gorduroso,

quase impossível de carregar.

 

E na sua plena atividade,

na diabólica plasticidade,

me arqueia o dorso,

me alquebra o corpo

até interditá-lo.

 

E na sua robustez de mito,

me debilita a frágil saúde

ainda mais,

nas suas dimensões de mito,

me diminui a forma

ainda mais,

na sua centralidade de mito,

me reduz a toda solidão

do cais.

 

Por isso, não morram

se eu resolver

extirpá-lo amanhã.

 

É que minhas pernas pretas

marcham melhor

sem o seu peso incômodo,

minha cabeça preta

se equilibra melhor

sem o seu peso incômodo,

todo o meu corpo preto

se ergue maior

sem o seu peso incômodo.


 

Questão de vala

 

resiste à pólvora odiosa

o corpo abnegado de Marielle,

o corpo compassivo,

suspenso em flor.

 

resiste a espumosas rotas de sangue

inscritas em mares de horror,

resiste à vida abreviada,

esquecida entre as histórias

de tantas vidas preteridas.

 

seja, enfim, questão de vala:

                           quanto fala

                                    a bala

                        que nos cala?

 

não pode conter o chumbo certeiro

o corpo abnegado de Marielle,

não pode conter os projéteis

que se desviam dos prédios da zona sul,

que se afastam dos carros de luxo,

que contornam os bem nascidos,

e vão alijar uma outra existência

já tão relegada à negação,

já tão calejada de nãos.

 

seja, enfim, questão de vala:

                           quanto fala

                                    a bala

                        que nos cala?

 

se assim vive, embora varado,

o corpo abnegado de Marielle,

o corpo compassivo,

suspenso em flor,

é porque aprendeu a enganar o fim,

tendo de suportar a dor mais doída

e se alimentar de si nos dias de fome,

teve de tatuar o etéreo nome

na carne viva da memória

a que nenhum fuzil pode matar.

 

seja, enfim, questão de vala:

                           quanto fala

                                    a bala

                        que nos cala?





 

 

Wesley Correia, escritor e professor baiano, é licenciado em Letras Vernáculas e Mestre em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana, doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia, com Estágio Doutoral na Universidade de Lisboa. Lançou seu primeiro livro, Pausa para um Beijo e outros Poemas (Ed. Nova Civilização) em 2006, e de lá pra cá já foram seis livros publicados, com destaque para laboratório de incertezas (Ed. Malê, 2020). Além dos já publicados, Wesley é autor de um livro de contos e de um romance, inéditos. Sua obra foi traduzida para o inglês, espanhol e romeno. Atualmente desenvolve pesquisas no campo das literaturas africanas, afro-brasileiras e suas representações, sendo além de escritor, professor do Instituto Federal de Ciência, Educação e Tecnologia da Bahia, onde ministra a disciplina "Literatura e Identidades Étnicas" no Curso de Pós-graduação em Estudos Étnicos e Raciais: Identidades e Representação






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