A poesia bela e visceral de Jade Luísa

                                                         Imagem por: Izabela Ewa Oldak


Sobre o dia em que a lua emudeceu

Esta noite a Lua é prata
E a glória chove, crua.
Enquanto a chuva anula o canto,
emudece o riso,
o riso gigante como o céu.

- o silêncio é infinito, mais infinito que o canto
de quem engole o céu.

Sua palavra é sempre grito
(ora bicho, ora nuvem)
Anoitece, voa o grito: mulher!

Pois ainda bicho ou nuvem ou mãe
Canta e grita, vira prata e azul,
e sangra em letras, ovula em luta.

Mais poeta que felina-anoitecer
Olha, arredia, a presa
o poema,
a noite
prata e fresca.

A noite grita: sou prata e fria!
Mãe, me ensina a virar bicho.
Regurgito as palavras que me engasgam,
mordo os beiços, os seus beiços

- Foi quando me lembrei da primeira vez que vi minha mãe chorar.

                                                                  ***


                                                             
                                                             Imagem por: Polly Nor


Eco de lusco-fusco

Escuto a água arranhando o vidro
Suas unhas rascunham calmaria e flores
Esqueço como a água sente a pele
Esqueço como a água rasga a pele

Os dias arranham o vidro
Esfolam as flores que a água rascunhou
Dissipam a face que a noite tingiu

O fogo a guerra os mortos, já não os sinto
Eles ainda vivem nos sulcos do asfalto
Mas eu, tingida de noite, esqueço.




                                                                  ***

                                                                 Imagem por: Bruna Dutra

Confesso devanear-me nos seus dentes

Então você olha pras minhas maçãs
e sorri quando percebe que elas ardem
até o pé da orelha,
bem no lugar que você beijou antes de me dizer
mariposas e besouros.
Não sinto dor agora, apenas
quando eu me deitar sob as coxias do inverno.
Elas protegem minhas orelhas da sua saliva
mesmo quando eu não peço, mesmo
quando meu anseio maior é me
embaraçar no vazio entre a sua gengiva e a sua
orelha.

Agora eu falo pelas coxas.
Sigo contando histórias sobre como estou
cega pela luz da sua garganta
surda pelo som do seu tórax
muda pelo eco das suas pupilas
inerte pela lava que escorre das minhas coxas falantes
entoando elegias por detrás do seu pescoço,
como quem enrola a língua ao sussurrar seu nome.
Baixinho, para que só o desejo possa ouvir.


***

                                                                              por: Kurt Arrigo

Sobre mulher gigante ao descobrir as guelras


Eu navego mas não como marinheiro

sim como sereia
possuo a força das ondas
me arrebatam as ondas
me carregam as marés e navego
em lonjuras leves de espuma
de crista de onda

Possuo males e enganos
nunca como homens ou náufragos
eles que têm medo – e organizam simpósios
e enciclopédias de medo
metrificam o medo
ceiam brindam gozam
e celebram o medo
em folhetins em manifestos
em congressos do medo

Eu não naufrago – tenho guelras e seios
minha ciência minha arte
meu alimento meu sexo
são ancestrais:
aprendi com a minha mãe
que aprendeu com a mãe dela
que aprendeu com a mãe dela
os segredos da vida e da morte

E como sereia ainda me faço feia
bela apenas pra quem me toca
lhes nego então a dor feia dos olhos
a dor das orelhas
a dor dos dentes
e chupo seus dentes, os faço azul

Pois como boa sereia, azul e feia
ser meio peixe meio guelras
meio mulher mãe irmã
meio morte meio sexo
inteiro seio, inteiro astro,
inteira cais, farol e seio
para todas as que se tocam nas redes
afogadas de cabelos limpos, pretos e limpos
Rede runa redário vivo
Toda vida rebenta [e morre]
no seio das sereias.
                         
    ***  
  

Imagem por: John Leigh - Karborn


Quando a maresia cochicha velhas angústias

Perdoe o medo do mar, meu bem,
mas grave o vestígio da saudade,
do vinho esquecido no fundo da taça.

Crave os dentes sadios
naquela coragem ínfima que repousa como alga
no âmbar da epiderme,
quando a maré enche e lhe umedece o vazio do esôfago.

O desejo enrosca sua lã em meus nervos
e salpica sobre a pele esporos corpulentos, insaciáveis,
como se proferisse cantigas enrijecidas
de mel e sal nos meus poros.

***


Jade Luísa é potiguar de nascença, paulista de criação e brasiliense de passagem.  Nascida no primeiro ano do milênio, quando o sol passava pela constelação de peixes. Cursa Letras na Universidade de Brasília, onde reencontrou-se com o teatro, atuou nas produções “Um não sei o que, que nasce não sei onde” do projeto Quartas Dramáticas (2019), e “Quando eu quero eu viro bicho” (2019), de dramaturgia coletiva estreado no festival Cometa Cenas. Atualmente aventura-se como dramaturga para o Coletivo de Teatro Enleio e trabalha no projeto de seu primeiro livro.




Comentários

  1. Parabéns Lou, excelente seleção. Jade Luísa é uma voz poética desconcertante.👏👏👏👏👏

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Jade Luisa é braba demais!!!! Chega arrepiei

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  4. Simplesmente bela.
    Parabéns Jade Luísa

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