Divina Leitura | A palavra vencendo a clausura: uma leitura de "Cicuta e cilício" de Jeanne Araújo

 

Coluna 15


A palavra vencendo a clausura:

uma leitura de Cicuta e cilício de Jeanne Araújo

- por Divanize Carbonieri


Cicuta e cilício (Penalux, 2021) de Jeanne Araújo é um contínuo monólogo amoroso, monólogo que se queria diálogo, mas que, sem encontrar as respostas desejadas, retorna ciclicamente para sua emissora. A voz poética que ecoa nesses poemas ressoa a de Mariana Alcoforado, freira a quem são atribuídas as Cartas portuguesas, publicadas inicialmente em 1669. Nessas cartas, um eu feminino se dirige ao amado distante, ora com esperanças de voltar a vê-lo, ora convencido da irreversibilidade do abandono.

O livro de Araújo apresenta a mesma dualidade. O êxtase amoroso se confunde com o desamparo, dois sentimentos que causam uma sensação constante de delírio ou frenesi na subjetividade que ali se expressa. A continuidade já mencionada se refere à presença constante da mesma voz, que, de poema em poema, expõe seu drama interno ao mesmo tempo em que tenta uma interação com o objeto de seus afetos.

Mas o eu-lírico empregado por Araújo não é exatamente igual ao emitente das cartas de Alcoforado. Algo da nossa contemporaneidade líquida se imiscui nesse léxico entre sagrado e profano de tom eminentemente barroco. Os poemas breves, de versos curtos, escritos de acordo com uma rigorosa concisão, sem que nenhuma palavra reste excessiva, estão marcados por um tempo e uma realidade muito mais fragmentários do que Alcoforado podia sequer imaginar. A mulher que fala em Cicuta e cilício é nossa contemporânea, e suas dores também nos pertencem.

Atualizar o vocabulário, a perspectiva e sobretudo a estética de um texto já consagrado não é tarefa fácil, mas Araújo realiza tal empreendimento com maestria. Na verdade, talvez seja injusto cotejar seu livro com o de Alcoforado, ainda que ele tenha lhe servido de fonte. O que Araújo produz é algo totalmente novo, uma obra única, de valor intrínseco e assinatura própria.

Quatro são as partes que organizam o conjunto de poemas: “Profano”, “Claustro”, “Elegias” e “Místicas”. São como estações de um amor condenado. Em “Profano”, os encontros amorosos explodem em cenas a um só tempo cotidianas e sagradas, corriqueiras e elevadas. “Claustro” se refere ao afastamento daquilo que se ama, o estar-se só quando se desejava uma nova reunião de corpos e almas. A ausência do amor devora o íntimo da amante, e seu próximo passo, em “Elegias”, é matá-lo dentro de si. Contudo, o preço por tal extermínio surge delineado em “Místicas”, com o sacrifício de significativa parcela do eu, que pode vir acompanhado da extinção da vida física ou não.

A celebração do sexo em “Profano” atua como um verdadeiro conjunctio alquímico ou casamento sagrado, não apenas entre homem e mulher, mas principalmente entre corpo e espírito. Imagens de veemente erotismo são como que bordadas por metáforas ascendentes.

 

Enquanto espero, mantenho

as pernas abertas, cálice profano

onde bebes leite e mel

enrosco-me no teu peito quente

e dito palavras obscenas ao teu ouvido

peço-te tua adaga em fúria

e te dou minha pérola em ostra viva

 

pescas um poema em minhas profundezas.

 

Vulva equipara-se a cálice, uma espécie de Santo Graal de carne e sangue em que o amado bebe o maná prometido pela divindade aos escolhidos, leite e mel, materializados nas secreções sexuais da mulher. A conjunção carnal é, assim, também uma forma de comunhão com o divino. E a elevação do obsceno prossegue, passando da imagética puramente religiosa para a literária. “Adaga”, “fúria”, “pérola”, “ostra” são vocábulos que remetem a narrativas recorrentes, sobretudo de contos maravilhosos, deslizando sobranceiras acima de uma camada caudalosa de estímulos sensuais. Além disso, para coroar a cena, o orgasmo não é simplesmente visto como gozo, mas como a materialização (ou pesca/resgate) de um poema, retirado das profundezas do desconhecido e trazido à luz da consciência, exatamente como acontece em qualquer ato de criação.

No “Claustro”, esse caminho místico por meio da fusão com outro ser está interditado, e não resta alternativa a não ser a individuação trilhada na solidão. Na verdade, o destino da voz poética nesse segmento espelha o de nossa espécie, condenados que estamos a ser sós, em um mundo em que os deuses, se existem, só podem ser alcançados indiretamente e em que os outros não têm acesso à nossa interioridade. O amor, nesse caso, acaba por se revelar ilusório, uma névoa que nos impede de enxergar as coisas como elas são.


Desapegar-se parece ser a sina de todos, e a voz poética relata esse processo: “Renunciei a quase tudo/ovelha desgarrada que sou/entre a morte e o tormento/a palavra como labareda”. Novamente, há uma referência à literatura, à palavra, que surge não como via de escape, mas como veículo para a purificação exigida. Ela é “labareda”, chama que queima o que não pode mais continuar existindo na subjetividade.

As “Elegias” são cantos fúnebres, que celebram de certa forma aquilo que está morto. Preparam o enlutado para aceitar a perda. O luto é dor, mas também libertação: “Livrei-me de mim e de ti./Estou pejada de andanças/e de amor desbastada”. Estando finalmente liberto, o ser se torna prenhe de se enveredar por outras sendas. Desbastar, por sua vez, é um termo bastante usado no campo semântico da arte. Em um bloco de mármore, por exemplo, desbasta-se o excesso de rocha para que surja a escultura “escondida” em seu interior. Da mesma forma, a persona desses versos retira de si os refugos deixados por um amor infrutífero para dar origem a algo novo.


Por fim, em “Místicas”, ela está diante da própria morte: “Quem é essa que me espreita/e me oferece rendas, flores e névoas/se eu a abraçar delicadamente?”. Mas não estamos todos? Espreitados constantemente pela aniquilação, que virá inexoravelmente, sem que possamos adivinhar quando. Nesse mar de dissolução, quem concede a imortalidade não é o amor, fogo fátuo, mas a palavra, a criação literária, que sobrevive no transcorrer dos séculos, tal qual a de Alcoforado sobreviveu.


“A palavra rompe os grilhões/pois é certa a fúria do tempo/e minha alma reclusa voa./Tudo é silêncio./Mas eu canto”: assim se conclui o monólogo presente em Cicuta e cilício. Nessa toada, Araújo nos oferece uma obra de rara beleza, unidade e estética revigorada. De um caso particular, extrai os insumos de que se alimenta o espírito humano. Assim, só se pode esperar que rompa os limites de qualquer clausura, logre se lançar ao mundo e vença a dilapidação das eras.



Apoio: Marinete Luzia Francisca de Souza, Monica Maria dos Santos, Wesley Henrique Alves da Rocha, Francielly L. Rodrigues da Silva.




Cicuta e cilício (Penalux, 2021) pode ser adquirido diretamente com a autora em suas redes sociais (https://www.facebook.com/jeanne.araujo.12) ou no site da editora (https://www.editorapenalux.com.br/loja/cicuta-e-cilicio).




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