Divina Leitura | Sororidade e quebra de estereótipos em "Contos de Yõnu" de Raquel Almeida

 

Coluna 14



Sororidade e quebra de estereótipos em 

Contos de Yõnu de Raquel Almeida 

_ por Divanize Carbonieri

 

Em Contos de Yõnu (2019), Raquel Almeida apresenta uma galeria de mulheres comuns vivendo situações cotidianas em algumas cidades brasileiras. No entanto, é justamente nisso que parece residir a novidade do livro. São perfis de personagens que nem sempre encontraram expressão na literatura mainstream. A mulher comum, termo que se refere, na verdade, a milhões de indivíduos únicos que se localizam no amplo território do que se denominou de subalternidade, certamente não ocupou, na história dos estudos literários, o mesmo espaço que os homens brancos de classe média ou alta. É quase como se ela não pudesse ser vista como protagonista, como se suas histórias não tivessem interesse literário.

O Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, sob a coordenação da professora Regina Dalcastagnè, desenvolveu um estudo em que foram analisados 692 romances escritos por 383 autores em três períodos distintos: de 1965 a 1979, de 1990 a 2004 e de 2005 a 2014. O escopo se restringiu aos romances publicados por três grandes editoras comerciais: Record, Companhia das Letras e Rocco, indicadas por especialistas na área como as mais importantes no mercado editorial brasileiro.

A conclusão a que se chegou foi a de que, mesmo nessa grande extensão de tempo, o perfil do autor típico brasileiro e de suas personagens manteve-se praticamente inalterado. Considerando-se apenas a última década estudada (2005-2014), 70% dos autores e mais de 50% das personagens eram de homens brancos.

O livro de Almeida é uma coletânea de contos e não um romance. Porém, não parece despropositado relacioná-lo a esse contexto. Além disso, a mulher comum representada por ela é principalmente uma mulher negra. A interseccionalidade entre gênero e raça empresta uma complexidade ainda maior à exclusão no palco da literatura. A própria Dalcastagnè chama a atenção para a diminuta presença de autoria negra na amostra coletada pelo estudo:

 

Se olharmos para o primeiro período, de 1965/1979 a 1990/2004, há uma evolução significativa, por exemplo, no número de mulheres publicando. Mas é impressionante como há uma barreira para a questão da autoria negra. E não é que não haja produção – embora autores negros produzam mais contos, crônicas e poesia do que romance –, mas ainda assim há uma ausência muito gritante, tanto em relação à autoria como em relação às personagens.

 

Diante desse cenário, a relevância de narrativas como as de Almeida torna-se ainda maior. Todo um campo de resistência se forma em obras publicadas por editoras independentes ou em edições bancadas pelos próprios autores. Contos de Yõnu ostenta o selo do Sarau Elo da Corrente, um coletivo literário que atua, desde 2007, em Pirituba, periferia de São Paulo, estimulando e promovendo a literatura de autoria negra. O resultado é a insurgência de novas perspectivas nas narrativas literárias, demandando atenção por parte da crítica.

É inegável que as personagens de Almeida vêm da classe trabalhadora. Porém, há um elemento característico. Elas têm ocupações urbanas, contemporâneas, ainda subalternas, mas em grande parte já deslocadas do ambiente doméstico. São moças e senhoras que trabalham em lojas, escritórios, bares. É possível que tenha havido, por parte da autora, a intencionalidade de explorar outras possibilidades de atuação para a personagem negra, escapando dos papéis de empregadas domésticas a que muitas vezes elas ficaram relegadas, quando retratadas pela literatura canônica.

Tomando o conto "Amondi" como paradigmático dessa realidade, podemos examinar a interação entre as duas personagens que ocupam o papel de protagonistas. Entre a moça sem nome que está tomando um porre de bombeirinho no bar da Loira e a proprietária do estabelecimento, há aproximações e distanciamentos. A princípio não sabemos o motivo para a busca pela embriaguez da primeira.

 

Quis apagar, ficar vagando pelas ruas, se sentia um lixo, sem credibilidade, tudo que fizera tinha sido em vão, não teve dó de si mesma. Depois de três copos de bombeirinho, emendou no famoso “se me dão”, tudo que aparecia no boteco ela mandava para dentro do corpo que julgava indigno (p. 23).

 

Poderia ser um caso de desilusão amorosa? Quase imediatamente pensamos nessa possibilidade, como se não houvesse outro motivo plausível para uma mulher se embebedar num boteco. A impressão parece ser confirmada pela fala da Loira, que também ignora as razões da freguesa e tece relações com a sua própria trajetória.

 

Calma moça, a bebida não vai acabar, pelo menos hoje não! Já fiz isso uma vez quando vi um caso meu com família, tavam todos, mulher, os quatro filhos, papagaio e cachorro, ele olhou pra minha cara e me ignorou, acredita? [...] É, eu saí do estacionamento do shopping chorando, ah, mas eu era novinha assim, igual essa daí, parei no primeiro boteco, bebi, bebi e dei pro cara mais asqueroso que tinha no bar, daí em diante virei puta (p. 24).

 

A carreira na prostituição de Loira, no entanto, ficou para trás. Agora, aos sessenta anos, ela é a única dona de bar da vizinhança, gerindo-o sozinha. Apesar de poder haver a expectativa de que o destino da moça embriagada espelhe o de Loira, conforme o conto avança, outros desenvolvimentos conduzem para um desfecho diferente. O principal aspecto é a sororidade com que Loira acolhe a garota, protegendo-a de qualquer assédio e levando-a para sua casa para passar a noite.

Na manhã seguinte, por meio do emprego do discurso indireto livre, ficamos sabendo dos motivos que a levaram a tal descontrole:

 

De quem era aquela cama? Sentou e se encolheu, começou a ouvir as vozes da audiência, cada palavra que lembrava a golpeava feito faca, pensou que deveria ter seguido o conselho da colega de trabalho que a alertou que seria perda de tempo, que o processo, além de demorado, era perigoso, já que seu chefe poderia persegui-la, ameaçá-la, além de perder o emprego (p. 30).

 

O drama da moça é o mesmo de muitas trabalhadoras da atualidade em escritórios, lojas e fábricas: o assédio sexual por parte dos empregadores. A autora quebra a expectativa, construída pela leitura anterior de narrativas estereotipadas, nas quais apenas razões amorosas levariam uma mulher a beber até a inconsciência. Interrompe-se ainda a noção de que não pode haver aliança entre uma ex-prostituta e uma jovem trabalhadora que também cursa a faculdade. Uma visão determinista, que insiste em esperar que alguém que passou pela experiência de ter sido cafetinada vá fazer o mesmo com uma novata, é simplesmente minada.

Mais importante do que isso, implode-se o racismo estrutural, que pressupõe que o destino de uma moça negra pobre não possa ser outro além da marginalização e que uma prostituta negra não possa ter outro desfecho na velhice que não as ruas e a decadência. Ao final do conto, a jovem, após ter recebido o apoio de Loira e também de sua avó, está pronta para buscar um novo emprego e superar o ocorrido. E Loira segue cuidando dignamente de seu bar.

Nas demais narrativas, essa abertura de possibilidades para a mulher negra se confirma. Em “Ijaba”, ela descobre que pode buscar o prazer sozinha, sem ter que esperar que ele lhe seja dado por um parceiro decepcionante. Em “Zarina”, a moça observada no ônibus pela narradora deixa cair da bolsa o crachá, que mostra “que tinha um emprego nem tão ruim” (p. 48). Em “Minkah”, a protagonista descobre um meio de se livrar dos abusos que sofria do cunhado, escapando definitivamente do papel de vítima. Em “Latasha”, ainda que o relacionamento amoroso seja retratado de forma realista, com todas as decepções que podem dele advir, a expectativa de que a personagem esteja presa a um homem conscientemente abusador também é interrompida.

Em “Sela”, talvez a narrativa mais impressionante do conjunto, a protagonista é chamada de Dona da rua, sendo na verdade, dona da boca de fumo da localidade. Apesar de estar ligada ao crime, ela assume uma posição de justiceira na comunidade, principalmente punindo os homens que são violentos com suas mulheres. E impõe seu poder sobre os outros homens, seus comandados. Ao final, é mais uma vez a sororidade que vai alterar o destino da coletividade:

 

Ela pensava que precisava ampliar sua equipe, ainda estava cansada por ter arrastado o cara pela rua, ela sabia que tinha feito um favor, era sua certeza, antes ele do que eu, e se sentia honrada por manter aquela vila em ordem, só ela matava ali e só morriam homens, não tinha a ver com ideologias, ela sabia a sua força e a usava. Ela queria agora guardas mulheres, e como ela havia passado pelo vale da sombra da morte por conta de um homem, ela tinha certeza que a mulher do cara que estava morto aceitaria participar no seu grupo. Era um bom dia pra pensar mudanças e ampliações nos seus negócios, e foi sorrindo e cantarolando e em seus planos, um segundo de paz (p. 86-7).

 

Contos de Yõnu é um livro que merece ser lido porque traz, para o foco da literatura, narrativas e personagens que não podem mais passar ignoradas. As mulheres negras são vistas, na obra, como sujeitos de sua própria história, tendo nas mãos as rédeas de suas vidas. Mesmo que o machismo e o racismo estruturais ainda ofereçam sérios obstáculos à sua plena realização como indivíduos, esses pilares de dominação estão sendo rompidos pela força das personagens. Além disso, trata-se de uma prosa ágil, enxuta, contundente e determinada a quebrar estereótipos raciais e de gênero.


Referências


 ALMEIDA, Raquel. Contos de Yõnu. São Paulo: Elo da Corrente Edições, 2019.

DALCASTAGNÈ, Regina. Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro (entrevista concedida a Amanda Massuela). Revista Cult, 05/02/2018 (https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-o-autor-brasileiro/).


Apoio: Marinete Luzia Francisca de Souza, Monica Maria dos Santos, Wesley Henrique Alves da Rocha, Francielly L. Rodrigues da Silva.




http://literarua.commercesuite.com.br/livro/contos-de-yonu-raquel-almeida




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