Morgana Poiesis | um conto e um poema

Edward Ladell


NOTAS DE UM OUTONO ANTES QUE TARDIO

(por Morgana Poiesis)

(…) caiam as folhas ao vento, às margens do rio, sob o sol brando de outono. As flores cultivadas na primavera haviam sido queimadas ao calor mesmo do verão, e agora uma cesta com frutas apodrecidas sobre a mesa, de tudo que colhera nas últimas estações. Olhava para ela como quem contemplava a própria morte, silenciosamente, enquanto fumava o seu cigarro habitual, na porta da cozinha, logo pela manhã. Lembrava de uma parábola em que as frutas estragadas deveriam ser separadas daquelas em bom estado, pois estragariam todo o resto. Mantinha-se passiva diante da necessidade dessa seleção, a inércia se sobressaía à consciência, e as frutas seguiam em um lento processo de desintegração, à sua frente e pelo decorrer dos dias, preenchendo o ambiente com um dissabor insuportável. Logo o outono se transformaria em inverno, e o que seria dela se   degenerasse junto com as frutas? Sentia o aroma do café que estimulava uma outra atmosfera, então trabalhava, até voltar àquela mesma cena, na manhã seguinte, e lá estava a cesta, intocável. A cesta, tão concreta, se transformara em um portal do tempo que a transportava para outras paisagens. Em uma delas, andava a canalizar a terra para a passagem violenta das águas, que desviavam em seu curso natural, para que juntas não se confundissem lama. Podia escorregar no limbo por entre as pedras, no mais profundo e transparente das águas. Na paisagem do outro dia, animada pela cesta, vislumbrava o final de uma travessia que lhe fora atribuída desde o princípio das fugas que terminaram por lhe lançar de volta ao seu abismo pessoal, quando a trilha sonora ao fundo dos seus sonhos se calara. Então repousava, novamente, em frente à cesta, na qual logo mais não restaria nenhuma fruta. Em uma dessas manhãs ensolaradas, por entre tragadas e devaneios, ouviu ranger a porta da casa e entrar correndo a filha da vizinha, ofegante, com as bochechas vermelhas e os cabelos despenteados. Ela aparecia sempre depois da escola, para brincar com a gata e contar as mais inusitadas estórias, com seus ares de aventuras infantis. Avistou a cesta logo que entrou na cozinha, foi direto até ela e não hesitou em pedir uma fruta. Tanto insistiu que acabou por encontrar algumas em perfeito estado, pedindo que as levasse para casa. Ao ouvir “sim”, improvisou uma cesta com seu vestido estampado de pequenas folhas verde-claras e saiu assim como entrou, veloz, com as frutas que ela mesmo selecionara, gritando pela rua: “mamãe, mamãe, consegui salvar essas frutas!” A voz da menina desaparecera gradativamente junto com os seus rastros. Esvaziou a cesta, finalmente, levando as frutas restantes para a composteira, no quintal. Olhou para o céu de nuvens esparsas e deu graças pela criança que resolvera o dilema da cesta, em um piscar de olhos. Sem que o soubesse, ela também a fizera relativizar as suas inclinações existencialistas e a desconfiar de que o outro não era exatamente o inferno, apenas o espelho dos seus próprios demônios. Vestiu um lenço como quem se mostrasse pronta para a nova estação, distraindo-se pela pequena cidade, onde desejava apenas viver, enquanto a própria vida lhe lembrava que era muito mais (…)


***

Imagem Pinterest

ROMANCE EM LINHA RETA
quando entrou em minha vida
com as suas botas de lama
pisando nas flores do jardim
que eu cultivava só pra mim
pensei: que desastre!
seja bem vindo
mesmo assim
passadas duas primaveras
não lamento:
viva o começo
viva o meio
e viva o fim!


***


Morgana Poiesis é poetisa, atriz-dançarina, performer, jornalista e produtora cultural. Graduada em Comunicação Social, especialista em Comunicação e Política (UESB), mestra em Artes Cênicas (UFBA) e doutora em Performances Culturais (UFG). Colaborou com os jornais O Planalto, Folha Solta e o O meio, com o programa de rádio Minutos de Poesia, com a revista de literatura Organismo e com o portal Cronopios. Desde 2015, produz livros-objetos artesanais com poesias, contos, manifestos e cartas, participando de exposições e saraus em feiras de publicações indepententes, no Brasil. É idealizadora, roteirista e locutora do programa de rádio Maria Bonita: mulheres na literatura brasileira, transmitido diariamente na rádio educativa UESB 97.5 fm.  É integrante do grupo Mulherio das Letras, com publicação na coletânea de escritoras lusófonas Mulherio das Letras Portugal: poesia, prosa e conto. Baiana, atualmente mora em Vitória da Conquista-BA.





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