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Coluna 01

Na moda


Brasil. Férias escolares de janeiro de 2021. Mesmo que seja uma pessoa planejada ou que tenha dinheiro para viajar, caso haja sinais vitais na consciência, você está devidamente em casa, ainda em quarentena, pois a pandemia do coronavírus, que dominou o mundo em 2020, ainda não acabou. E das mil opções de atividades para relaxar, você de repente escolhe assistir a um desses programas televisivos de entretenimento que nunca vê, pois você trabalha nas manhãs. E um dos temas do programa é racismo, “muito em voga em 2020”. 

As convidadas para a conversa são negras, a apresentadora, claramente, não, como é de costume. As convidadas são precisas na denúncia do racismo, na valorização da negritude, na convocação da branquitude, afinal, se a questão negra “é lugar de fala delas”, o combate ao racismo é “luta de todos”. Seria interessante discutir isso que para alguns soa paradoxal: não sendo negro não posso falar sobre racismo, mas como então lutar contra ele? Seria importante entender que esse “não posso falar sobre” é uma distorção do conceito de lugar de fala, afinal todos falam de algum lugar, o que também não é apenas a sua “humilde opinião”. Seria necessário pontuar que isso que os não negros chamam de “respeito” pode ser, de repente, entendido como omissão, o silêncio que apaga, nega, dizima o valor e perpetua o terror. Mas isso tudo é devaneio meu. No fim do programa, a apresentadora, com a pressa característica dos programas ao vivo com tempo certo para encerrar, agradece e arremata com “somos todos humanos” ou uma variação desse tema! 

Enquanto nós negros e negras não formos realmente ouvidos, essa dinâmica vai permanecer. Não é a repetição que ensina, mas a reflexão. Não adianta haver tantas notícias, cursos, lives, entrevistas, debates etc se quem precisa ouvir - e já é ouvido por tantos, por estar em espaço de destaque - continua começando com “vamos falar sobre o racismo, tema que está na moda” e terminando com “somos todos iguais”. Isso é andar em círculos, quando acordamos todos os dias - às vezes nem dormimos! - é para avançar.  

Uma das frases mais ditas na mídia e em conversas em geral em 2020 foi “a pandemia escancarou as desigualdades no país”, inclusive em relação ao racismo e ao sofrimento da população negra. Mas reflitamos um tantinho, amores: o livro #Parem de nos matar, de Cidinha da Silva, teve a primeira edição em 2016. Nas palavras da autora, o livro “apresenta em crônicas textos opinativos sobre racismo, branquitude e privilégios raciais, ao tempo em que são destacadas pessoas e atitudes que resistem a essas ações destrutivas da humanidade dos negros”. Não conhece? Vá ler. O livro O que é Racismo Estrutural, de Sílvio de Almeida, foi publicado pela primeira vez em 2018. Outro dia ouvi de um comentarista de rádio, que quis se mostrar na moda, a pérola de que foi o Sílvio de Almeida que criou, isso, “criou” o termo racismo estrutural. Vá ler, por favor! A informação assustadora de que a cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil é revelada pelo Mapa da Violência de 2014, com dados de 2012. Vá estudar! Solano Trindade versou em 1961 “matam meus irmãos, / matam as minhas amadas, / devastam os meus campos,/ roubam as nossas reservas; (...) / Nosso sono é tranquilo / mas o opressor não dorme”.

A pandemia só “revelou” as desigualdades para quem insiste em não ver ou foi bem ensinado a não enxergar, a continuar considerando natural o que vivemos desde a escravidão e talvez principalmente no pós-abolição. Não basta discutir racismo em maio, novembro ou quando uma notícia sobre violência nacional ou internacional repercute. Muito menos é suficiente filtro, selinho e hashtag em rede social. E antes de usar a frase da Ângela Davis novamente porque está na moda, vá procurar desde quando ela disse que “numa sociedade racista não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. 



Na raça

(Inspirado por Miriam Alves)


Cada minuto conta

Cada segundo contra

Monotema

Que o agora é sempre


Que corrente pesa mais?

Ferro?

Cárcere?

Social?

Psico soma o quê?


Quem dera fosse minha cabeça:

Resolvo,

Esqueço,

Nunca existiu.


Fibromialgia não é poesia

Nem rima com crônica

Só é dor

Persistente

Tal a notícia diária:

Mais um

Mais uma

Tudo Negro: 

Em prisão 

Em humilhação

Na surra

Na morte

Fora da fila da escolha

Fora da lista da escola 


E se fura a estatística,

Palmas ao mérito, 

Troféu e exemplo único:

"Basta querer".


Não quero essas palmas

Esse sorriso pérfido

Esse elogio quando eu doce 

Ao eu-ser fora da curva.


Sou pelo povo preto 

Que me trouxe

    me é

    me virá


Cada minuto conta

Cada segundo contra.


Canso. Quero dormir. Preciso.

Mas não paro

Se mais um

Se mais uma

Tudo Negro

Ainda tomba. 


E levanto-nos 

Pela vida negra

          de aqui      de agora

Que seguro pela mão

De entidade.


(Morada, 2019, Editora Feminas)





Comentários

  1. Parabéns pela estreia da sua belíssima coluna, Catita! Um orgulho para nós. Obrigada. ✨

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  2. Parabéns pelo texto! Que ele possa atingir muitas (in) consciências. Te admiro!

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