Possibilidades de uma poeta impossível | Marilia Kubota




Mosaico - Resenha - 06
Possibilidades de uma poeta impossível

Por Marilia Kubota

"Possibilidades" (2006), o último livro escrito pela poeta gaúcha Angela Melim, trabalha com o possível da linguagem diante do impossível da vida. Sua poesia são "pinceladas faiscantes de objetos nervosos", como define Leonardo Fróes no prefácio. Cacos, retalhos, grafismos, ranhuras, incisões: elementos que remetem à fragmentação do discurso racional. A lógica desta poesia é o fragmento, o rompante emotivo, a imagem lacerada. São possibilidades de comunicação num universo em que a ordem é o caos .

A poesia lida com as possibilidades da linguagem. Há mais invenção na restrição de recursos do que no desregramento. Isto porque a linguagem é, antes de tudo, um sistema, que para ser  compreendido por todos os falantes e escritores, cria regências. Na história da poesia, regras foram criadas para levar a efeito o que se considerava boa   ou bela  —  poesia. As vanguardas poéticas do início dos anos 1900 desestruturam as linguagens verbais, optando por interferências de linguagens visuais. Assim, o modernismo atravessou o século 20 e deixou rastros no Brasil com o movimento da Poesia Marginal.

Capa da Ibis Libris (foto da autora)

A Poesia Marginal, surgida nos anos 1970, resgata a palavra deslocando ritmos engessados. A linguagem coloquial está no centro, rompendo com o conceito de linguagem poética dos simbolistas e românticos. A nova ordem poética  — ou desordem   é o cotidiano, a rua, a simplicidade, a contestação do conservadorismo. Esta descontração não significa falta de rigor.

É o que se observa nesta poesia de fino trato de matéria e conteúdo:


FLORES

Colho olhos fixos
de novo
boca seca
aberta
 o não completo me suspende
entre parênteses invisíveis e impotentes
no ar parado  
de passeio neste campo imperceptível
minado
que a pasma semântica do absurdo
colore de avesso e espanto,
flores que explodem ao contrário.

(1999)

Andy Wharol

Como nota Ana, uma das características da poesia da Angela é a incandescência, com todas as nuances, relacionada a "estados extremos da sensibilidade quando tocada, atiçada", ou seja, o toque erótico, e também a "uma luz suave ou o calor frio de uma chama de uma pequena vela acesa. A incandescência é algo que alimenta e ilumina por dentro. Trata-se de uma abertura ao mundo. Uma vaga resistência à anestesia do cotidiano; portanto, de um estado estético." (pág. 19, Angela Melim, por Ana Chiara, Ciranda da poesia, Eduerj, 2011).

Tem um verão dentro de mim
um verão quente
um verão louco

Sol e vento se abraçam
amorosos

a luz explode.

É um verão que acende o corpo
e ao mesmo tempo agita a alma

da criança de sempre
que quer correr 
descalça na praia.

Antes mesmo de setembro
vem com os cupins

venerar lâmpadas.

Alças, decotes
vestidos de algodão

debaixo do chuveiro
o Cacique Bunda Branca
tira o calção.

No ar promete um sopro
um bafo instiga

arde a vida no calor.

Viva o verão.

(1o. de setembro de 2004)

"Possibilidades" foi incluído na antologia poética "Dia más, día menos" publicada em Buenos Aires, em 2017. A antologia reúne os livros "As mulheres gostam muito" (1970), "O vidro e o nome"(1974), "Das tripas coração" (1979), "Vale o escrito" (1981), "Poemas" (1987), "Mais dia menos dia" (1996).  Angela Melim nasceu em Porto Alegre (RS), em 1952 e hoje vive no Rio de Janeiro. Também publicou: "Os caminhos do coração"  (1981), "O outro retrato" (1982) Tem dois volumes inéditos: "Ainda ontem", de contos, que recebeu prêmio da União Brasileira de Escritores e "Personagem",  Prêmio Bolsa de Literatura, da Fundação Vitae para as Artes.

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