Mulher de Palavra 03 - Natalia e seu pomar


Mulher de Palavra 03 - coluna de entrevistas literárias

Natalia e seu pomar
por Maya Falks

Preferimos as árvores que dão frutos. Traduzindo a metáfora, pessoas que produzem algo, que acrescentam algo para a sociedade, são as que nos interessam mais como espelho, como exemplo. Provavelmente essa metáfora com árvores frutíferas já é clichê para Natalia Borges Polesso, já que ela (olha a metáfora ambiental aqui) ganhou a tartaruguinha mais cobiçada da literatura por um livro chamado "Amora".

Mas Amora não é um livro sobre a frutinha de-li-ci-o-sa que dá em árvore, e sim, sobre outra coisa ainda melhor: o amor. O "a" ao final simboliza que o livro de contos reúne histórias de amor entre mulheres, se tornando um livro histórico na luta pela visibilidade lésbica e o combate ao preconceito.

Claro que nem tudo são rosas e árvore que dá bons frutos é a que mais leva pedrada, certo? Infelizmente, sim. Conheço Natalia tem um bom tempo, dona de um carisma impar, simpatia idem, humildade à última potência; não é o tipo de pessoa que se mete em encrenca por impulsividade ou por "barraquismo", mas tem conteúdo, muito conteúdo, e foi assim que nosso jornal local perdeu uma de suas melhores colunistas, porque ela simplesmente não precisava enfrentar toda a semana a mentalidade mesquinha e baixa dos seguidores da página do jornal.

Sou tiete da Natalia, assumidíssima, e ela sabe disso. Já fiz uma de suas oficinas, resenhei dois de seus livros em meu projeto literário e a cito sempre que me cabe oportunidade. Acredito sinceramente que, se nosso mercado literário fosse feito de mais pessoas com o perfil dela, teríamos um segmento muito mais unido, solidário e humano. É uma utopia, mas pessoalmente levanto as mãos para o céu por termos ela.



1. Embora para o grande público você seja conhecida pela vitória do Prêmio Jabuti com o livro “Amora”, você é também uma pesquisadora em pós doutorado na área da literatura. Sendo uma escritora premiada, traduzida para vários países e com trabalhos migrando para o audiovisual, você acredita que sua formação teórica teve grande influência sobre isso ou considera a escrita e a pesquisa duas áreas distintas?

Acho que teve sim, mas com o mesmo peso de outras coisas na minha vida, por exemplo, o fato de eu ser do interior, o fato de ser mulher, de ser lésbica, de ter crescido com pouca grana, acho que todas essas coisas nos constroem, então a formação também, mas ela não foi e nem é um determinante. Mas tem umas coisas curiosas, minhas pesquisas de mestrado e doutorado foram sobre cidade e geografias na literatura e eu pouco ou nada usava de construção espacial de cidade nas minhas histórias. Eu acho isso engraçado, fui me interessar por um tema que passa longe do meu tipo de literatura. Porém, a minha pesquisa de pós doutorado é totalmente influenciada pela existência do Amora. Eu pesquiso geografias lésbicas em literatura, isto é, eu mapeio e analiso livros de mulheres LBTQIA, e se não fosse Amora ter me colocado em situações de ter que falar sobre o que eu acho do termo “literatura lésbica”(eu acho que é bem complexo conceituar isso, prefiro usar de autoria lésbica ou com protagonistas lésbicas) não teria tomado esse caminho.


2. Anualmente, você publica no seu perfil de Facebook a lista de livros lidos no ano, e é sempre uma lista bastante longa. Na sua experiência de leitura, é possível perceber o nível de empenho dos escritores em suas obras, a diferença entre quem trabalha a narrativa e quem simplesmente joga as ideias no papel?

Antes de responder, gostaria de contar que este ano eu só li 4 livros inteiros até agora (vários fatiados, mas só 4 inteiros), de modo que este ano prevejo uma lista bem pequena (geralmente é em torno de 80 livros). Dito isso, eu acho que não se pode medir o nível de empenho. Pode ser que a pessoa tenha se empenhado muito e ainda assim ter escrito algo que não agrade ou vice-versa. O resultado depende de muitos fatores, que eu acho que sim tem uma parcela de empenho e prática e exercício e edição e escolha de tema e capacidade imaginativa, mas eu definitivamente não acredito que a gente pode medir isso em níveis. Como leitora, eu gosto ou não da obra por uma série de fatores que têm a ver com os que citei aí. Como pesquisadora, a qualidade não me importa muito na primeira parte do trabalho, meu dever é mapear, constar, registrar, depois eu escolho os que mais interessantes em termos de criação de espaço pra falar sobre e isso envolve outros fatores.

3. Além da participação em eventos, debates, palestras e afins, você também leciona em oficinas de escrita criativa e é muito acessível a novos autores (ou veteranos abertos à aprendizagem) como ferramenta de fomento à produção literária. Nessa sua jornada de transmissão de conhecimento, qual foi a situação que mais te marcou?

Primeiro, eu queria comentar que não acho que algo como transmissão de conhecimento possa existir. Parece uma coisa muito mística isso (risos) ou de ficção científica. Eu acredito em propor práticas, exercícios e discussões que vão ajudar a pessoas aprender e a aprender a aprender. Entende? Nesse ponto, as oficinas são momentos muito legais de partilha! E é uma viagem pensar nessas práticas, eu aprendo muito sempre. Eu adoro dar oficinas e eu sempre começo com diversos exercícios que envolvem silêncio e não-escrita. As pessoas sempre se surpreendem. Umas adoram, outras detestam, ficam inquietas, já teve gente que abandonou a aula, gente que teve ataque de ansiedade, ataque de riso, ataque de tosse. O silêncio coletivo compartilhado é algo que sempre me intriga, acho que isso me marca a cada vez que dou a oficina.

4. Você já foi bastante premiada com seus contos – incluindo o Jabuti – e lançou seu primeiro romance, Controle, ano passado. Quais foram seus maiores desafios para levar à narrativa longa a mesma qualidade que te trouxe reconhecimento na narrativa curta?

Antes de publicar o Controle eu já tinha escrito duas outras narrativas mais longas, de modo que Controle é minha primeira publicada, mas não escrita. Acho que o desafio é a paciência da entrega, de ficar exausta e irritada de ter que ver e rever tantas vezes aquela mesma história. Talvez o desafio resida nessa teimosia de continuar no livro, de se render ao texto. Porque eu acho que um romance exige que a gente se doe mais frequentemente. Ao menos pra mim é assim, senão eu me esqueço das coisas.


5. Recentemente foi lançado Corpos Secos, um romance distópico escrito por você, Luísa Geisler, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Como funcionou a dinâmica entre vocês para conseguir construir uma narrativa coesa feita por quatro pessoas?

A escrita de Corpos Secos foi uma experiência muito enriquecedora em termos criativos, porque me fez escrever algo que nunca teria pensado não fosse o convite, e em termos de organização planejamento, porque tivemos que combinar alguns elementos da história antes de começar e cumprir o combinado. Quando a gente escreve sozinha (embora eu não acredite nisso) é mais fácil mudar de caminho, de ideia, etc. Em Corpos Secos, precisamos seguir o planejamento. Então, a cada período entregávamos um capítulo e a Luara, nossa editora, lia, organizava e mandava de volta pra nós anotado e com a ordem que ela acreditava ser a melhor. E assim foi a cada capítulo. Tínhamos encontros via Skype para conversarmos a cada entrega. Depois lemos tudo e editamos. Depois nos encontramos pessoalmente para conversar, beber e tirar fotos. Foi muito legal.

6. Corpos Secos conta a história de um país mal governado assolado por uma pandemia viral; embora na história criada por vocês as vítimas do vírus se transformam nos corpos secos (os famosos mortos-vivos), muitos elementos na história se assemelham de forma assombrosa com a atual realidade do país. Considerando que Samir declarou em seu Facebook que o livro foi escrito antes do início da atual gestão e, portanto, muito antes da pandemia que enfrentamos, como está sendo pra você reconhecer no seu cotidiano tanto do que foi criado para o livro?

Estranho. Mas não tanto. Acho que Corpos Secos é um livro dinâmico, rápido, que tem doses de humor, o que faz tudo correr melhor. Tivemos que mudar a divulgação do livro, no entanto. Porque havíamos pensado em pôsteres do vírus, transmissões, gráficos, aí achamos que seria de extremo mau gosto fazer isso no meio de uma pandemia. Teria sido legal em outro momento. Enfim, acho que o que me pega mais não é Corpos Secos, é o outro livro que tenho pronto, que comecei em 2016 e terminei em 2019. Um livro sobre colapsos de sistemas, instituições, do mundo, das pessoas... esse livro, me deixa uma sensação de estranhamento maior.


7. Quando a editora Companhia das Letras divulgou o lançamento do livro Corpos Secos com sua sinopse, muitos fanáticos entenderam justamente como uma história que se passa nessa pandemia e nesse governo e proferiram ataques virtuais. Seu livro de contos, Amora, visibilizar a existência lésbica em um país machista e lesbofóbico (entre outras coisas) também foi centro de polêmicas quando o trecho de um dos contos foi utilizado no ENEM. Como você lida com essas situações explícitas de ignorância?

Sobre o Amora, eu tento lidar da melhor forma possível que é ignorando a horda de descerebrados quando os ataques são absurdos, descabidos e violentos e também propondo que as pessoas conheçam o livro ou o conto em questão, antes de abrir a boca pra falar abobrinha. Mas se eu disser que esses assuntos não me causam muito mal, estarei mentindo. Fiquei muito estressada e até entrei numa depressão bem ruim no fim de 2018.

8. Que livros você considera fundamentais para o acervo literário de uma escritora ou alguém que pretenda ingressar nessa carreira?
Não sou muito disso de livros fundamentais. Acho que são sempre escolhas arbitrárias ou muito pessoais. Mas penso que devemos ler o contemporâneo.



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