MEU PAIDEUMA FEITO DELAS: com Simone Teodoro, Clarissa Macedo e Nara Vidal




[Simone Teodoro]

A ESCAVADEIRA

Era abril
Eu arrastava mortalhas
pelos espaços da casa sem sentido
Eu arrastava mortalhas na palavra na boca da traça

Lembrava a velha cicatriz na chaga aberta recém inaugurada
de abril

Abril dos ninhos desfeitos
Abril do coração arrancado dos ossos
por uma escavadeira
Abril escuro

como um grito
por dentro.


[Clarissa Macedo]

CLICHÊ

Não teve na vida
pessoa que a inspirou:
mãe, pai, tio, avô

o que teve
foi um dedo apontado
na verruga mais triste
na ferida mais velha.


[Nara Vidal]

Era eu. No reflexo do vidro era eu. Meu cabelo era uma juba bem cuidada, meticulosamente bagunçada, com cheiro de flor quase murcha não fosse por mim mesma a injetar-me de água, na tentativa de evitar a tragédia que é a morte plena. Morrer aos poucos ainda é alguma vida.
Passei os olhos discretos pelo vagão. Um homem me chamou a atenção. Meio careca e já suado às oito da manhã. Traços finos, nariz agradável. Será que ele me queria?
Passava dias pensando se alguém ainda ia me querer. Rodopiei os olhos e vi um homem bonito. Tenho horror a homem bonito. Gosto de beleza em esculturas, quadros, não em homem. De certo eu era velha pra ele, mesmo que ele não tivesse menos que cinquenta anos. Notei a mulher que devia ser tão invisível quanto eu. Quis beijá-la, mas seria por pena.
Voltei os olhos para o homem meio careca. Ele lia literatura barata. Incomodou-me o meu desprezo. Se eu fosse menos esnobe, talvez meu marido notasse que eu tinha um mar nos olhos e que eu tinha uma boa estrutura óssea.
O homem meio careca notou que eu me via no reflexo. Eu jogava os cabelos pros lados na tentativa de um bom ângulo. Ele sorriu. Eu apertei os olhos. Enrubesci. Aquele homem não sonhava com uma mulher feito eu. Eu era tanto pra ele, e assim mesmo eu estava disposta a levantar a saia e mostrar meu mundo pra ele, pro homem meio careca.
Não trocamos telefone e nem um segundo olhar. Estive viva. Ninguém precisava saber disso. Agora precisava voltar a morrer. Depois do trabalho a volta pra casa me esperava”.
(A loucura dos outros, no conto Cecília)

***

O poema de Simone Teodoro está no livro Também estivemos em Pompeia (ed. Patuá)
O poema de Clarissa Macedo está no livro O nome do mapa e outros mitos de um tempo chamado aflição (ed. Ofícios Terrestres)
O trecho do conto de Nara Vidal está no livro A loucura dos outros (ed. Reformatório)





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