Poetas que li nessa manhã / Por Lia Sena

Luciane Valença

As poetas - Daniella Guimarães de Araújo, Adriane Garcia, Dalila Teles Veras, Bianca Grassi, Elke Lubitz, Lázara Papandrea, Ivy Menon, Mariana de Almeida.


 Sentido
Nenhum céu protege mais que essa casa interna em que habito
nada que eu possa fazer fora captura a paz desse sentido
por isso rego as minhas flores e amasso o pão, separo os utensílios, limpo os espelhos quando turvam
tenho para mim que o amor é de longa fermentação
tenho para mim que atravessar desertos e celebrações
é não mais que atravessar desertos e celebrações
por isso não dependo tanto dos utensílios e dos seres úteis
mas aguardo a poética revelação das coisas
no tempo do resguardo
pois
aprendi com os campos a primazia das sementes
a vida real e quente das coisas que palpitam
é o coração de um pássaro
palpável e próximo da minha mão
o real faz maravilhas que nem se contam
tenho para mim que meus amores descansam do fado e dos fatos
em minha companhia
por isso eu uso a música
que corta na hora os abusos do mundo
por isso reverencio o silêncio
a envergadura dos ventos
a copiosa junta de estrelas sobre as cabeças
tenho para mim que agosto olha para setembro com uma paixão quase carnal e não há mau augúrio nenhum
tudo é necessário nesse encadeamento das coisas
estrume e jardim
eu digo e repito a palavra paixão nas línguas latinas
estou viva
e não há nenhuma atenuante.

( Daniella Guimarães de Araújo)
***
O NOJO DE BETSABÉ

Enquanto Betsabé menstrua
Todos os homens se afastam
Urias não requer seu corpo
Davi não a cobiça do palácio
Ninguém se senta ao seu lado
Tudo o que Betsabé toca
Se torna tão sujo quanto ela
Por sete dias ela é imunda
E por mais sete é declarada impura
No oitavo deve oferecer sacrifícios
Ao deus que gosta de rolinhas mortas
Betsabé toma mais um banho
E por pior que seja o sangue nos panos
Entre mulheres que são revezadas
Para receber o sêmen dos homens
Aguarda o retorno dos dias
Em que a paz dura o tempo de um corpo
Protegido pelo nojo.
.
(Adriane Garcia)

***
recusa 


há qualquer coisa 
de interlúdio 
nesta ópera 
trágica/bufa 
sem libreto
só prelúdio 
para a qual 
não fui convidada

não ouço
não quero
não vou

(Dalila Teles Veras)

***

Abandono

A primeira vez que Deus me abandonou eu tinha 2 anos
Ainda lembro do meu vestido de botões florido
E da mão de um homem tapando a minha boca
Minha primeira lembrança.
Até hoje ouço a respiração pesada
A porta do banheiro trancada
E um botão colocado na casa errada.
A segunda vez que Deus me abandonou eu tinha 9 anos
Ainda lembro a vista do cemitério
E a marca da mordida de um homem no meu braço.
Lembro das batidas na janela
Dos gritos, dos vultos, dos sussurros
E de deixar tudo para trás pela primeira vez.
A terceira vez que Deus me abandonou eu tinha 12 anos
Lembro do calor do verão, do uniforme da escola,
E de um homem de capacete num terreno baldio.
A moto ainda ligada, plena luz do dia, o medo
Lembro da grama nas costas, manchas na camiseta branca,
E de correr a ponto de não mais sentir as pernas
Depois disso Deus me abandonou inúmeras vezes mais
Com 13, 16, 17, 20, 26 e até hoje
Todos os dias Deus me abandona um pouco
E quando não me abandona, me faz companhia em silêncio
Só pra ter certeza que meus demônios ainda vêm me visitar.

(Bianca Grassi)


Luciane Valença


PRESSA

Apresso o silêncio lúgubre dos lagos
antes que venham gorjeios forjando o sol
Apresso as margens preguiçosas do rio
antes que as nuvens acordem melodias
Apresso a minha vida, líquida e desfeita
antes de atravessar o mar dos últimos dias
E pouso neste horizonte límpido
“ Pássara “
Que adivinhou o fim do mundo .

(Elke Lubitz)

***

Sei um pouco do abismo por onde erras
Mas não posso saber tudo
Do tão fundo do fundo dos teus olhos.
Se estás moído até o osso
Se não te cabe ao ouvido a cor que ouço
Se tanto é fosso e miséria
Doo-te o azul
Se não puderes vir recebê-lo
Embebedo em azuis meus olhos e abarco o infinito dos teus abrolhos
Não porque te ame
Não porque te queira além do amor
Tudo é só porque me habitas como um mar.

Lazara Papandrea

***
fome de sim

há tanto que se lamentar
:
pedras rasgam barrancos
telhados desabam tempestade
gargantas engolem quarto sala cozinha
durmo
há tanto que se lamentar
:
as aflições florescem
vazam das mãos fechadas
o sim grita de fome
o não de enfastio talha lombos nus
finjo eternidades
há dores por todos os lados
a implorarem lágrimas
são muitas as contas do rosário
deságuo
anseio janelas abertas
futuro que me habite o olhar

(Ivy Menon)

***

Deixar registrado o tempo
Na palma das mãos
Deixar registrado o horror
Na epiderme da face
Os olhos úmidos
Vista devastada
Paisagem árida;
Deixar registrado o tempo
De nossa morte estúpida
Forjada no ódio e engano
Vida vendida por nada
Deixar registrado o tempo
Vencido por tantas barbáries;
Perdemos nossa vil humanidade
E estamos todos presos em casa
Fugindo do inimigo virulento
Bombardeios silenciosos
Nossa guerra está perdida
Envenenaram o ar
De nossa inútil alegria.

(Mariana de Almeida)















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