A poesia espetacular de Fabíola Lacerda


Desenho por W Patrick

T O D O S  O S H O M E N S  M O R R E R A M
todos os homens morreram
todos
ando por entre cadáveres
tentando não pisar em nada
apesar do cuidado
pelas pontas dos pés
ocorre-me de pisar num crânio ou outro
num fêmur numa tíbia
em pequenas falanges
estou só
quase sem ar
mas prossigo
suando sangue
chorando sangue
em minhas artérias circula o pus de muitos séculos
prossigo
intuo que talvez ainda haja vivos
mulheres andando perdidas
absortas
tentando encontrar alguma culpa após a desforra
que traga de volta o sentimento de realidade- a culpa
não há o que fazer
além de prosseguir
encontrar alguém
relatar a hecatombe
lavrar obituários
registrar como todas nós- inconspirantes
num mesmo instante
mesmo transe
desferimos os golpes acumulados desde lilith
mas hoje não queria falar sobre nada
é preciso procurar e não encontrar
é preciso deitar a mente na suspensão do pó
il faut
não ampliar o holocausto
o levante involuntário


C U R S I N A
Cursina é uma mulher gostosa
É bem mais gostosa que uma ruma de mulher vestida 
apenas com filigranas de chantilly
(com uma cereja por entre os dentes: uma forma de dizer sim)
Cursina é um fio de maraschino escorrendo 
pelo canto dos lábios
por entre os seios
engolfando no umbigo
gotejando por entre os pelos mornos
Cursina é um continente banhado por um incerto Atlântico.

Ou
Cursina não é uma mulher gostosa
É bem mais chata que uma ruma de mulher
vestida com camisa de força
estuprada por um dildo de castidade
( com uma mordaça rangendo por entre os dentes: uma forma de dizer não)
Cursina é um fio desencapado introduzido pela uretra
ideias silenciadas por entre as clavículas
sangue escorrendo pelas narinas
coagulando pelos ouvidos
Cursina é um continente destroçado por um restrito Pacífico

Ou
Cursina não é uma mulher. Não é uma mulher.
Uma mulher não deve ser.
É bem mais mulher que uma ruma de mulher
costurada com fio de náilon de 7mm
(com dentes arrancados entre os maxilares: uma forma de dizer nunca)
Cursina é um fio de ódio um fio de náilon 
um fio de memória um fio de sangue 
um fio de maraschino um fio de mágoa 
um fio desencapado de esperança um fio de rio
cursando o tempo em eletrochoque
Cursina é uma mulher
grave e urgente
Si plangere così, si plangere così
la bella Cursina fenisce così.
Cursina é um continente abandonado por oceanos

J ‘OE L H O S

eis que um dia olhei para meus joelhos e tive uma vertigem:
eu era extremamente alta.
o mundo, em todos seus turnos,
já também o era, por si,
tão alto e sorumbático quanto meu plexo cardíaco.
isso foi em dois mil e treze.
tinha o mesmo um metro
e setenta e três
e pesava quarenta oito quilos.
lembro, e a mémoria chega a ser táctil,
de não conseguir tomar banho, ou comer,
por três dias.
eu era extremamente alta e minha cabeça,
sobre meus joelhos,
pesava mais que a orbe lítica de sísifo.
eu era extremamente alta e andava,
no longínquo e perigoso trajeto
da cama ao vaso sanitário
de joelhos.
eu era alta e extremamente algo
que algo áspero que era aquele
que nem o digo
e o trajeto só percorria de joelhos
com medo dos ventos e das janelas
que sugam as gentes solitárias
com sua descomunal força centrípeta.
eu era algo ou o mundo que o era.
mas, ainda que esmagada pelo mundo,
nunca seria suicida
dado que sempre tive horror a cadáveres e longos silêncios:
por isso andava de joelhos
com medo de ventos e janelas
e rogava a todos os deuses conhecidos
que resistisse.
que meus joelhos aguentassem
mais uma ilíada-
do banheiro à cama desfeita-
por mais um dia.
por mais uma vez, a realidade fragmentada a delírios.

GREY GARDENS

É preciso estar há muito tempo só
Esquentar o leite amornar o leito
Não se deter ante espelhos fantasmas
Para negar que aqueles vultos viúvos
Que habitam os cômodos da casa
Quais ratos e baratas
Lhes pertencem
Espectros
Voltas sonâmbulas
Em que o tempo não transita
E o que se sabe de si é
Um rosto um corpo que já não existem
Um broche de libélula a atar o véu
É preciso estar há muito tempo só
Transpor a linha lúcida
Ser o passado de si
O último registro antes do sol
Se pôr
C O N S U E L O

consuelo tem sonhos breves
em seu sono à conta gotas
consuelo- às madrugadas-
reza a um deus pagão
que não sabe o nome
que não ouve a voz
noz
moscada e pecã,
a consuelo falta a falange
do dedo indicador
da destra
e a falange anelar
da sinistra
consuelo entre estrelas e demônios

às oito da manhã consuelo sempre
conversa ao telefone
- por dez minutos-
com sua tia vitalina mais para saber:
se esta ainda está viva
e confessar
que ela
-consuelo-
também está viva ( muito viva aliás)
a despeito dos dois dedos
mutilados
a esperança
contida numa ânfora
( entornada)
e embora ainda
lhe fira
- a memória fria
da fuligem sobre os lírios
da síria
mel amêndoas
água de laranjeira
consuelo mantém reservadas
dúvidas
manias
suaves orientações
consuelo entre gigantes e anões
às oito da manhã
consuelo é
discreta
em seu desespero.

* Ilustrações: Desenhos de W Patrick


Fabíola Lacerda já publicou poemas em revistas de Literatura e participou da coletânea “A Noite Dentro da Ostra” e “ Poesia em Tempos de Barbárie”, ambas organizadas pelo poeta e estudioso Cláudio Daniel, lançada pela Lumme Editor em 2019. Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Pernambuco, é servidora pública e escreve e publica seus textos nas redes sociais mais como exercício de cidadania  que por se acreditar poeta.





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