Um Conto inédito de Cínthia Kriemler

Desenho por W. Patrick


Exaustão

Manuela cobre com os dedos o filete de luz que desenha um traço fino na colcha branca. A claridade que escapa pela fresta da persiana semicerrada é um brinquedo inesperado que distrai a insônia. Pensa em se levantar e abrir a janela para que a luz banhe toda a cama, mas desiste. O filete é o bastante. Estica e encolhe os dedos na faixa branco-azulada, e a brincadeira a relaxa. Por trás das persianas, há uma lua que não se importa com as suas formas deformadas.
A manhã vai clarear logo. E a casa será de novo uma rotina entediante. Não fosse o cansaço pelas noites maldormidas, ela não se importaria com as obrigações diárias. Obrigações. Nos dois últimos anos, tudo o que ela faz são exercícios estúpidos para não deixar que a perna e o pé se atrofiem de vez. Desde o acidente, não caminha mais sem a ajuda de muletas. A perna que ficou presa entre as ferragens do carro é mais curta e encurvada. O quadril está permanentemente deslocado. Quando sai de casa, usa uma cadeira de rodas para que o encurtamento seja menos notado. Mas em casa prefere as muletas.
Há dois anos, ela se desfez da empresa de eventos. Não queria se expor às perguntas dolorosas que seriam feitas. Ou aos olhares de pena que a magoariam mais do que as perguntas. Ela não aguentaria. Por isso, pouco depois do acidente, decidiu fechar a empresa. Mas a oferta de compra feita por um concorrente se mostrou uma solução mais sensata. A ideia de não deixar os funcionários desempregados a convenceu.
Nos meses seguintes, sentiu falta das reuniões de trabalho, das negociações com os fornecedores, da montagem dos locais de evento, das pessoas. Mas não deixou que ninguém percebesse o quanto estava deprimida. No início, trancava-se no quarto por uma ou duas horas e pedia que não a chamassem para nada. Isolada, abria o closet imenso e, bem lentamente, equilibrando-se nas muletas, experimentava as roupas de trabalho como se estivesse se aprontando para sair. Anéis, brincos, pulseiras, echarpes, lingerie, vestidos.  Depois, sentava-se na cadeira de rodas e abria uma a uma as caixas com sandálias e sapatos, acariciando-os. Até que criava coragem e olhava para o pé deformado. Então, o choro a dominava. Com o tempo, a apatia superou o choro. Nada traria de volta os movimentos, nem o pé sem defeito, nem a vontade de viver. Em seu lugar, uma sensação estranha, triste e paradoxal de que, mesmo sendo uma mulher forte, não seria capaz de superar as sequelas do acidente. Disse isso ao médico. Ele dobrou a quantidade de frascos que ela passou a consumir. Amortecida pelos comprimidos, se desfez, em uma só tarde,  dos sapatos, das bolsas e dos acessórios. Exausta, pensou nos pais. Ao menos tinha os dois para cuidar dela. Mesmo que isso representasse só uma quantia volumosa depositada no banco a cada fim de mês.  
A mensagem no celular, de algumas horas atrás, avisa que a mãe vai chegar de São Paulo na hora do almoço, para uma visita rápida. Manuela sabe que haverá atrito. Como sempre que se falam pessoalmente. Não serão vozes alteradas. Não, isso, não. São, ambas, mulheres educadas. E se há uma coisa pela qual ela agradece à mãe é por lhe ter ensinado um desprezo enorme pelo drama e pelas demonstrações emocionais exageradas. Mas as duas sabem se ferir sem se exaltar. Profundamente.
Pouco antes de duas da tarde, mãe e filha estão sentadas uma de frente para a outra. Dinheiro. Esse é assunto. A mãe vai direto ao ponto. Exige que ela volte a trabalhar. Exige. Sem a empresa, trancada em casa, não há como bancar a vida cara a que você está acostumada, Manuela, diz a mulher elegante. Seu pai e eu decidimos que não vamos  mais ajudar você nessa sua escalada de autopiedade. Você não é uma vítima, é uma sobrevivente. Supere.
Força de vontade. Disciplina. Superação. Quantas vezes esse mesmo discurso, desde a infância? Tem vontade de gritar. Dizer que precisa de carinho, de atenção. Que quer ser uma vítima infeliz pelo menos uma vez na vida. Uma única vez. Que quer que os pais a sustentem como fazem com as instituições, as fundações, as organizações que ajudam. Só por mais um tempo. Até que ela esteja forte o bastante para sair de casa e mostrar ao mundo a perna mais curta, o pé retorcido. Sem se importar com as críticas, a piedade. Mas ela sabe que não haverá acordo. Nunca houve barganhas de afeto entre elas.
Irritada, Manuela se levanta para encerrar aquela conversa inútil. Na raiva, se esquece das muletas. E a queda é inevitável. A dor no corpo é imediata. O joelho está sangrando. Mas isso ela aguenta. O que ela não suporta é a dor de ver que a mãe não se levanta para ajudá-la. Ela grita pela enfermeira. A mãe a repreende por gritar. Ela responde com um palavrão intencional. Dá certo. Sem uma palavra, a mãe se levanta e sai, deixando-a ali no chão, a meio caminho da cadeira de rodas trazida às pressas pela enfermeira.
Manuela sabe que nunca mais se verão. Os frascos repletos de comprimidos sobre a cômoda do seu quarto vão garantir isso.



Cinthia Kriemler é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de O sêmen do rinoceronte branco (Contos, 2020). Tudo que morde pede socorro (Romance, 2019); Exercício de leitura de mulheres loucas (Poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017) – finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos, 2015) – semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Contos, 2014); e Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz a convite da Editora Penalux, em 2017. Tem textos e poemas publicados em diversas antologias e em revistas literárias.


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