Nossa Senhora de um cacho só - crônica de Ivy Menon

Pietà - Michelangelo

Nossa Senhora de um cacho só

O dia da primeira comunhão chegara para minha irmã,  mas ela estava triste e envergonhada. A mãe costurara à mão   um vestidinho branco de amorim, quarado no sol e passado com o ferro de brasa, para combinar com a coroa de florezinhas de plástico presas em uma tiara de arame encapado com crepom.  Ela usava um velho par de tênis azul, nos pés. Há muito tinha notado a diferença entre as suas roupas e as das amigas. Não estava contrariada com aquilo. Acostumara-se.

Estava infeliz porque, enquanto fazia o catecismo, aconteceu de lhe sair um furúnculo na cabeça. No couro cabeludo, bem no meio do cocuruto.  Do tamanho de um ovo de galinha. Sofreu como gato no saco. Muito tempo de dor, além de ter que suportar o deboche que pendia dos dentes cariados das crianças de sua rua, a rirem e a apontarem seu imenso tumor-unicórnio. Furúnculo tem tempo certo para ser espremido. A mãe esperou amadurecer. Apontar o bico para, então, apertar entre os dedos polegares decididos.

Ela aguentou firme. Criança pobre não pode ter vontades. Logo que nasce já lhe é tirado esse direito. Um furúnculo, um par de congas velho, uma dor que perdura no tempo... as soluções, todas, pertencem aos pais. Ou ao Deus dará. Aprendemos a aguardar libertação. Aprendemos a lutar por libertação. Minha irmã chorava os dias que faltavam para que lhe libertassem do abscesso, no alto da cabeça.

Quando o mondongo veio a furo e o carnegão explodiu, alucinou-se de dor. Eu ajudei na expurga. Segurei seus braços para trás. Menina presa nas unhas da mãe. Asas cortadas, enquanto, pus e sangue escorriam. [Há coisas que devem ser extirpadas. Sofrer toda ela de uma única vez].

E o tumor se foi, deixando uma imensa clareira desmatada em seu antigo território. Quase como quando o pai fizera o nosso rancho, no meio da mata atlântica, eu pensei, vendo a brancura no couro cabeludo da minha irmãzinha meio careca. Outros tantos meses a ser estigmatizada. Durante a calvice de minha irmã, ninguém conhecia a palavra bullying, então, apenas foi excluída do grupo das crianças da escola. Não queriam ser vistas com ela. Os meninos eram os piores. Os mais crueis. Gostavam de atirar pedras em direção ao alvo desenhado em sua cabeça, sob vaias e palavrões.

Assim, ela passou a ansiar suas madeixas de volta. E nasceram-lhe novos cabelos. No local devastado pela doença, surgiu um tufo. Uns cipós entrelaçados em um cacho só. A menina estranhou aquele ondular escuro, no meio de sua lisa lourice. O novo cacho crescia para cima e, desafiando a lei da gravidade, resistia à ideia de cair. Era independente. Ninguém sabia lidar com tanta autonomia. Não havia o que fizesse o despudorado rolo assentar-se.

No dia da Eucaristia, ela foi para a missa, chorando. O vestidinho branco, mal amanhado, os congas desbotados nos pés e o cacho escuro escapando da tiara de florezinhas. Estava feia, sabia.  Padre Ademar notou a lágrima contida. Ela pediu para fazer a primeira comunhão em outro dia, porque não estava bonita, como pedia a ocasião.

Padre Ademar abaixou-se e falou: você está tão linda, criança! A mais linda de todas que estão na fila. Até me lembrei da Virgem Maria, quando vi sua coroa de rainha!”. A menina, primeiro se assustou. Segundos depois, ela conseguiu se imaginar famosa com seu cacho-coroa. A notícia correndo de boca em boca pela cidadezinha, até ser manchete na televisão: “a Imaculada Nossa Senhora de Fátima escolheu uma menina do interior do Brasil, para ser parecida com a Santíssima Mãe de Deus! E mostrou sua predileção, dando à ela, depois da dor e da vergonha, uma coroa natural. Perene".

A santidade cobria sua cabeça de anjinha. Ela queria voltar a ser linda e brincar de roda com as amigas. Então, se aprumou e pensou que ele tinha razão. O cacho enfeitava sua coroa e ela era parecida com Nossa Senhora de Fátima, sua madrinha sempre lhe dizia.  

Caminhou até o altar, faceira. Comungou com o infinito.

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