A poesia surpreendente de Amanda Vital



Cinco Poemas de Amanda  Vital



Mística

há uma vendedora na feira de pedra sabão de ouro preto
oferece uma pedrinha de quartzo rosa para as moças
sejam namoradas sejam solteiras saem todas com a pedra
nas mãos orientadas para que guardem na bolsa na chave
na gaveta de calcinhas algum lugar que seja mexido com
certa regularidade e não fique parado no tempo e no pó
a vendedora diz que o quartzo rosa é uma pedra do amor
salvou casamento de filha amizade com primos com irmão
resolveu um desentendimento feio que tinha com o irmão
trouxe harmonia de volta para casa ela diz e entrega o
quartzo para repassar esse legado nas mãos das meninas
nem sei se a maioria acredita nela mas saem todas dali
semblantes quietos pensativos pouca ou muita esperança
o punho fechado protegendo o caminho da pedra ao bolso
: bênção de patuá mineiro se aceita sempre em silêncio



broto 

em 1965 joão cabral de melo neto dizia que a poesia
era como catar grãos de feijão que boiavam na água
nos tempos de vó não se catava feijão assim: sempre
era encher três mãos dentro do saco de juta despejar
tudo em cima da mesa e dedilhando pedra por pedra
milho por milho fazia um pequeno monte no colo em
cima do vestido para levantar a barra da saia jogar no
lixo lavar o que sobrou na bica ao lado das pastagens
aproveitar completar a panela para deixar cozinhando
ao redor do fogão as meninas aprendiam pelos olhos
medir a água contar o tempo macerar o alho com sal
e refogar com banha de porco o feijão da vó era feito
de um silêncio mineiro de fazer qualquer poesia ficar
só espiando na ponta dos pés pela janela dos fundos



armadura

quando menina apertava os dedinhos na barra da saia
de algodão num canto via as colegas bonitas correndo
seus corpos de dente de leão suas levezas sem esforço
pelo pátio elas sabiam subir em árvores e pular muros
e sabiam dizer as palavras exatas para me derrubarem
de lá de cima as palavras pulavam sobre meus ombros
quando mulher aperto meus dedos embaixo do casaco
e crio forças para enfrentar a beleza hoje saio do canto
com os ombros tensos para não cair e crio meus pátios
acima das árvores e fora dos muros também sou leveza
recolhi do chão os ninhos caídos as sementes expostas
e dentro de mim habita uma ave há vinte e poucos anos




bisturi

eu não quero saber desses afetos da palavra:
leia minha poesia me olhe nos olhos e diga se
é boa ou má. não me toque pelos ombros não
me imagine despida não tome meu partido em
rixas. mas me leia como lê os seus comparsas.
com o mesmo cuidado e fundura, talvez calma.
sobretudo me leia como quem busca os óculos
para examinar um corpo. me leia com as mãos
cobertas de álcool em gel. eu não quero saber
desses afetos do lado de fora da palavra: atrás
da porta, tudo é ruído e espera. se quer me ler,
leia como alguém que não goste tanto de mim.





bisturi nº 2 (ou 'o ovo ou a galinha')

 o poema costuma vir antes da assinatura antes
do movimento dos dedos sobre uma superfície
que seja legível existe o poema antes da pessoa
o poema existe: nasce cresce se reproduz morre
na pior das hipóteses as entrevistas mal dadasa
dificuldade de socialização os alcoolismos a falta
de emprego uma ou outra bola fora traçam bem
a figura do poeta esse mistério essa maldição de
persona non grata e o poema ali jogado à borda
de uma mesa um pano onde enxugam manchas
de sangue ou leite derramado enquanto a briga
enquanto os estilhaços enquanto sobre a mesa.





imagens 1, 2, 4 e 5 de Gildásio Jardim Barbosa
imagem 3, de Mário Cesariny




Amanda Vital (Ipatinga/MG,1995) é editora-adjunta da revista Mallarmargens. Bacharel em Letras - Estudos Literários pela UFMG, vive em Óbidos e cursa Mestrado em Edição de Texto pela Universidade Nova de Lisboa. É autora dos livros Lux (Editora Penalux, 2015) e Passagem (Editora Patuá, 2018). Seus poemas são encontrados nos blogs Amanda Vital Poesia, Equimoses e Zona da Palavra, além de espaços virtuais como Germina, Ruído Manifesto e Literatura & Fechadura. Também participou de antologias como Ventre Urbano e 29 de abril: o verso da violência. Foi curadora da 4ª edição da antologia Carnavalhame.
Contato: amandavital@live.com.


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