Resenha do livro VÉSPERA DE LUA, de Rosângela Vieira Rocha



ÀS VÉSPERAS DE UMA LUA QUE SANGRA PORQUE O AMOR FAZ CHOVER EM VERMELHO E DOR

(por Nic Cardeal)

O primeiro pensamento que me veio à mente, quando abri o envelope enviado de Brasília, e vi a capa, e li o título, foi: ‘esse livro deve ser bem vermelho por dentro…' Ao iniciar a leitura de VÉSPERA DE LUA, de ROSÂNGELA VIEIRA ROCHA (Editora Penalux, 2015), confirmo minhas suspeitas. Verdade. Muito vermelho. De uma lua que todos os meses sangra porque o amor faz chover em vermelho e dor. E não é apenas o sangramento biológico, mas aquele jorrar de alma, aquela intensidade beirando maré cheia, no ir e vir das ondas, de que somente o coração do útero de sentir é capaz.

Creio que não há mulher que resista impune a essas páginas. Nem mesmo homem. Um romance de todos os gêneros. Rosângela é aquela ‘domadora de letras' no incrível dom de fazer 'bons estragos' na alma da gente, e rapidamente. São somente 138 páginas. São profundamente 138 páginas! Sem direito a curativos supérfluos. Penso que a fluidez desse ‘rio' nos faz chorar mares, ainda que no recuo das ondas. Tudo aqui é nu e cru, num despir docemente sincero de roupas do corpo e da alma. Não há que se ter subterfúgios, tampouco retentores de quaisquer líquidos internos. É necessário o vir à tona, o transbordar dos sentidos, a inundação de vermelhos, o rasgar de vazios tão repletos.

Há que dizer ainda mais. Depois de estarmos às vésperas da lua, não mais poderemos negar. Nós, mulheres, somos todas Paulas. Viemos para o amor, humanas. Porque, como nós, Paula "procura palavras, ah, as palavras, ai, palavras que digam o que seu corpo grita. Sabe o perigo das palavras. Queria tê-las amigas, próximas e solidárias, mas, quando as busca, sente a inutilidade do gesto" (ROCHA, 2015, p. 20). Porque, como nós, Paula quer razões para o amor. Ou para a ausência de. Não há erros no amor. Sequer acertos. O que há no amor é unicamente ele, o amor. O suficiente para esse rasgo na alma  e essa impossibilidade quase oceânica de buscar reparos no navio que afunda. Tudo é muito fundo. Tudo é muito vasto. Tudo é muito pouco. E para onde estaria indo aquela vida que procura razões para as perdas a(e)fetivas? Por que são tão difíceis os fins que, de modo algum, justificam os meios de alcançá-los? De onde busca Paula as forças (que já não possui) para prosseguir na (tão vã) luta interna, para encontrar meios de pontuar o fim do relacionamento, já há tanto terminado dentro de si? Sim,  não há mais como negar, Paula procura meios (sem querer justificar o fim) para dizer adeus a Ester. E se agarra com unhas e dentes à dor física da lua que sangra em seu corpo, para não ter de encarar a palavra dita. Até que esta não seja mais necessária. Até que a outra venha e se antecipe no verbo… No início era o verbo. No fim, também… Sempre o verbo. Dito ou silenciado na garganta, sempre o verbo… (A que fins se conjugam os verbos do adeus?)

Sim, esse livro é fundo. Muito fundo. É vasto. Prolongado de dor, de corpo sangrado, de sentidos latentes e latejantes, de sentimentos vestidos, despidos, desnudos. Esse livro é de corpo. De alma lavada. De coração aflito e ferido por conflitos. De ciclos de vida e de morte da quase-vida que se foi feito riacho vermelho escorrendo entre as pernas: "Morrer e reviver de vinte em vinte dias, para quê?" (ROCHA, 2015, p. 36), pergunta-se Paula, sem respostas. Das dores do mundo das luas que nos tocam e nos ferem e nos arrancam as paredes do útero, mês a mês, ano a ano, vida a vida. "Seria bom se conseguisse doer junto, o corpo e o espírito menstruados, de modo a não deixar uma zona de si, por menor que fosse, capaz de ter consciência da dor do resto" (ROCHA, 2015, p. 45). Das dores de amor, de amar, de desamar, de partir, de deixar, de se deixar ir. Dos hormônios femininos, das dores entre iguais, das diferenças sempre tão relevantes, dos amores sempre tão desiguais. Do sentir-se dolorida e plena, ela, aquela que se enche e se esvazia de si mesma, nos ciclos de ir e vir das ondas, tudo sempre por causa da lua tão vermelha, nas fases e nas tantas faces escondidas de si mesma. Mulher.

Então Paula se enche e em seguida se esvazia, num lento processo lunar de esgotamento dos sentidos e sentimentos, como um desejo que vem e logo vai, exaurido pelo próprio querer. "A coisa já vai passar" (ROCHA, 2015, p. 119). Porque sempre tudo passa. E Paula sabe que, no fundo, no fundo, "a eternidade deve ser assim, sem menstruação, sem sangue (…) deve haver só transparência no eterno" (ROCHA, 2015, p. 119).

É um livro lunar, pulsante, hemorrágico. Como bem diz Ruth Silviano Brandão no posfácio, "luta inglória entre o corpo menstruado, ferido, e a palavra, também ferida, equivocada, que fala e cala" (ROCHA, 2015, p. 140). Que grita e sangra, como por magia, encantamento, a verdade que arde, por dentro e por fora. Como uma luz (lua) pousada no fundo da alma. Réstias ou inteiros de lua. Metades, pedaços, destroços, aos seus fins. Sem receios. Viver. Mesmo assim. Sangrando em vermelho, em amor e em dor.




Rosângela Vieira Rocha nasceu em Inhapim, MG e vive em Brasília desde 1968. Tem treze livros publicados, sendo seis para adultos (cinco romances e um de contos) e sete, infanto juvenis. Além de escritora, é jornalista, Mestre em Comunicação Social, bacharel em Direito e professora aposentada da Universidade de Brasília. Recebeu vários prêmios e o de maior destaque foi o Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG/1988, com o Romance, Véspera de Lua.

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