História de Natal de uma ateia - Chris Herrmann



Crônicas que as lembranças me embrulham de presente - 03
por Chris Herrmann

História de Natal de uma ateia

Eu nasci em uma família católica, com exceção do meu pai que era ateu. Fui batizada, crismada, participei do grupo jovem da igreja do meu bairro no Rio, onde participei de programas de apoio a crianças sem família que moravam em creches. Toquei órgão em missas na igreja. Estudei em colégio de freiras. Depois de passar por algumas experiências (que não vêm ao caso aqui) fui me afastando da vida religiosa até me tornar ateia. Só não divulguei essa decisão abertamente para família e amigos naquela época, até para não magoar minha mãe. Guardei para mim. Eu tinha a desculpa de trabalhar e estudar muito, de “não ter mais tempo para frequentar a igreja”. Porém, respeitava e continuo respeitando a crença (ou a não-crença) de todos.

Certa vez, fiz amizade com uma moça do meu trabalho, que mudarei o nome aqui por respeito, assim como o da mãe dela. A chamarei de Silvia. Então, Silvia e eu éramos solteiras e nos dávamos muito bem. Silvia tinha dificuldades para lidar com os novos programas de computador no trabalho e eu a ajudava na hora do almoço. Assim começou nossa amizade. Ela conheceu a minha família e eu a dela. Silvia e sua mãe (chamarei de Clara) eram católicas praticantes. Um dia, dona Clara me perguntou se eu era católica e respondi: “minha família é católica”. Fiquei sem graça de desapontá-la, porque ela demonstrava gostar muito de mim. Nossas famílias se visitavam. Minha mãe gostava muita da Silvia, da dona Clara e de toda a sua família. E vice-versa.


Arte de Lu Valença


Dias antes do Natal, Silvia me chamou para um almoço “pré-Natal” na casa dela. Eu fui e, como sempre, fui tratada com muito carinho. Depois da refeição, Silvia e eu ajudamos a lavar a louça. Silvia tinha que sair em seguida e eu fiquei conversando com a dona Clara que veio me contar uma história. Era sobre a filha de uma amiga que, segundo ela, se envolveu com drogas e ficou muito doente “porque não tinha Deus no coração”. Não seguia os ensinamentos de Cristo. Não assistia missas, etc. Que uma pessoa assim, só podia acabar nas trevas. Que ela achava mesmo bom que a Silvia não tivesse amizade com a moça.

Fiquei ouvindo aquele relato até que eu não resisti e perguntei: “dona Clara, a senhora gosta de mim?”  E ela: “que pergunta, minha filha. Claro que gosto, e muito!”  E continuei a perguntar: “a senhora me acha uma influência ruim para a sua filha?”  E ela: “nunca poderia pensar uma coisa dessas, Chris. Você é a amiga mais gentil, carinhosa e solidária que minha filha poderia ter.”  E eu: “É que eu sou ateia!” Silêncio. Durante segundos dona Clara não conseguiu dizer uma palavra. Ficou estarrecida olhando para mim. E disse: “jamais poderia imaginar... desculpe se te ofendi. Não foi a minha intenção.” E eu: “eu sei disso, dona Clara. Só queria que a senhora soubesse por mim. A senhora pode escolher não querer mais a minha amizade.”

Os olhos de dona Clara encheram-se de lágrimas. Ela me abraçou emocionada e disse mais ou menos assim: “obrigada por me abrir os olhos. Acabei de aprender uma lição, a de não julgar uma pessoa antes de conhecê-la melhor. Falamos tanto em bondade na igreja e esquecemos que não há bondade maior que o respeito às opções de cada um, mesmo que não possamos compreender. Minha querida, você é o meu melhor presente de Natal este ano.”

Comentários

  1. Linda crônica e belíssima ilustração!

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  2. Emocionou-me! Gosto de saber que isso acontece ou pode acontecer todos os dias! linda crônica/relato!

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    1. Que bom, Ivy. Eu arrisquei muito em dizer a verdade naquele momento, mas não resisti. Achei que deveria contar e fiquei positivamente surpresa com a reação dela. Obrigada. 😘

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