Uma crônica de Ivy Menon

            Eu amo tempestades...

Nasci de um homem bom e forte. Faltava-lhe juízo, todos diziam. O que não o impedia de ser excelente para nós, os filhos. Seu colo sempre foi sinônimo de aconchego e segurança. Porém não controlava a ira, por ser rápido em entornar o caldo e litros de cachaça. Todos tínhamos medo dele, quando bebia. A mãe, pequenininha, tremia diante daquela voz de trovoada. Era tempestade à vista, se chegasse da roça depois da hora. Sempre por conta de alguma briga que tivera, por qualquer contrariedade, num boteco de beira de estrada. Eu me encolhia. Meus irmãos gritavam apavorados.
Incoerente, meu pai amava Deus sobre todas as coisas e o próximo como a si mesmo. Estranho? Pois ele era Congregado Mariano. Começou como “coroinha” a ajudar os padres. E tinha o maravilhoso hábito de nos abençoar todos os dias. Não há como me esquecer dele sentado, em posição de ioga, na cama, a rezar antes de dormir e de se levantar para o trabalho pesado da lavoura. Especialmente de manhã, quando não corria risco de ele estar bêbado, eu costumava me sentar em uma de suas pernas, enquanto ele cochichava orações espontâneas. Colocava a própria vida e a de nossa família nas mãos de Deus, a implorar que não nos faltasse, ainda mais, o pão que já era escasso. E agradecia a dádiva de ter vivido mais um dia.
Cresci abençoada. Segura de ser amada. Crente: Deus certamente atenderia a oração de um pai. Deus era pai, fui ensinada. Diante do altar, cheio de santos que socorrem os pobres, aos seis, eu tirava o terço. Aos oito, conhecia, de cor e salteado, todos os sagrados mistérios da Sagrada Família. A Salve Rainha, recitava em latim. A miséria faz milagres. As procissões para molhar os santos, quando a seca chegava grande, terminavam em chuva abundante. Qual é mais fácil: semianalfabetos rezarem em latim ou ver a chuva cair, depois de molhar estátuas de louça nas águas baixas e barrentas do Rio das Araras?
Recordo-me da minha Primeira Comunhão, quando meu pai assistia ao padre da capela local. No meio da Mata Atlântica que cheirava a inocência e futuro. Eu tinha feito o catecismo em tempo recorde. Estava preparada. Mas não tinha sapatos. Alguém me doou um par de chinelos de dedos, o único calçado que meus pés viram, em mais de dois anos. Não sentia necessidade de andar calçada. Não daria certo usar sapatos e correr pelo mato ou esmagar o gelo das geadas, com as solas dos pés. Não seria o mesmo o barulho dos galhos quebrados e das folhas que atapetavam minhas trilhas.
Pobre papai. Naquele dia, por amor a mim, se fez dócil cordeiro. Renunciou a todos os seus raios. E auxiliou a celebração da missa, orgulhoso, com os pés no chão. Não houve quem doasse um par de chinelos, também para ele. Ele chorou emocionado: descalço e feliz pela hóstia consagrada na boca de sua primeira filha.
Continuo cristã, mas fugi da religião institucional. A Verdade liberta. Não suporto prisões; tenho horror a gritos; criança que passa fome, me põe em desespero. Sou contra a propriedade privada. Ao final, fiz-me descendente de Hermes: sou Terra, mas tenho asas nos pés.
Ainda hoje, fico louca de alegria quando o céu se risca de raios, antes do temporal. Vá entender!

Ivy Menon








Comentários

  1. Salve salve, linda e querida madrinha. Uma menininha, sempre, a usar o imaginário para sobreviver as intempéries climáticas e da vida. Feliz estou com mais empreitada que assumes, sempre confiante na competência de sua retidão e coerência. Sucesso, amada amiga poetisa, mulher mãe avó irmã.

    ResponderExcluir
  2. Maravilha, ler e vivenciar os momentos, umas vezes algumas lágrimas teimosas escorrem pela face. Lindo, Ivy, parabéns!

    ResponderExcluir
  3. Ah Ivy, suas palavras são trilhas, apontando um desfecho em horizonte aberto. E que impacto daqueles que emudece diante do extraordinário. Abençoado Hermes, mensageiro do enusitado.

    ResponderExcluir
  4. Gratidão, queridos, LeocLima, Ive e Silvana!Mei coração transborda de alegria pelo carinho de vocês !!! milhares de beijinhos poéticos!!!

    ResponderExcluir
  5. Suas cronicas trazem a marca de uma mulher que encarou a vida ainda menina e dia a dia a vence. Com lirismo, coragem e alegria! Ave, poeta!

    ResponderExcluir
  6. Muito boa, sua estreia aqui.
    O que vai de explicitamente autobiográfico me leva a conhecê-la um pouco melhor

    ResponderExcluir
  7. Muito lindo e verdadeiramente vivida.me fez entrar e viver esse momento na história.

    ResponderExcluir
  8. Obrigada, queridos amigos Poetas, João, Lia e Lou, pelo carinho! beijinhos

    ResponderExcluir
  9. Ivy minha irmã querida linda recordação te amo

    ResponderExcluir
  10. Te amo, meu irmãozinho amado!!!Vc sabe, porque viveu,as histórias! te amo!

    ResponderExcluir
  11. Parabéns Ivy. Que sejam felizes na "Santa Terrinha". Abraços.

    ResponderExcluir
  12. Salve! Coisa mais linda! Há tempos não lia algo que me tocasse tão profundamente.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Gratidão imensa, Silvia! Tão bom saber que minha história toca outras pessoas! Obrigada pelo carinho de me dar retorno. bjus

      Excluir

Postar um comentário

PUBLICAÇÕES MAIS VISITADAS DA SEMANA

Mulher Feminista - 16 Poemas Improvisados - Autoras Diversas

200 palavras/2 minicontos - por Lota Moncada

Nordeste Maravilhoso - Viva as Mulheres Rendeiras!

Dois poemas de Samanta Aquino | "A arte de ser mulher"

De vez em quando um conto - Os Casais - por Lia Sena

Uma Crônica sobre mulheres - por Rejane Souza

A poética feminista e arrebatadora de Alice Ruiz

UM TRECHO DO LIVRO "NEM TÃO SOZINHOS ASSIM...", DE ANGELA CARNEIRO | Projeto 8M

Cinco poemas de Eva Potiguar | Uma poética de raízes imersas

Uma resenha de Vanessa Ratton | "Caminho para ver estrelas": leitura necessária para a juventude